Caetano Veloso esteve no centro de uma nova controvérsia,
semana passada, quando, em entrevista ao programa do Bial, reviu sua posição
crítica aos regimes socialistas registrada no belíssimo documentário “Narcísio
em Férias”.
A força estética da obra de Caetano e do tropicalismo sempre
esteve alicerçada na articulação de opostos, um procedimento que herdou do
modernismo paulista.
Por meio da citação, da paródia e da colagem, sua obra
combinou o arcaico e o moderno, o tradicional e a vanguarda, o nacional e o
estrangeiro, o artístico e o comercial.
O resultado dessas combinações não foi apenas uma síntese,
mas uma espécie de promoção, na qual o Brasil moderno, “fora do lugar”, se
reencontrou, se reconciliou com o Brasil profundo e arcaico, levando-o adiante.
O mesmo se deu com a música comercial ou brega que quando
mobilizadas por procedimentos que dialogavam com a arte erudita eram alçadas e
erigidas.
Esses opostos mobilizados não eram, porém, as oposições
superficiais da conjuntura —a oposição entre o nacional-popular da canção de
protesto e a futilidade cheia de estrangeirismos da música comercial,
supostamente alienada—, mas as contradições estruturais da vida social
brasileira.
Na política, também, Caetano não se deixou capturar pela
oposição dicotômica entre o autoritarismo da ditadura militar e aquele das
diferentes experiências socialistas, adotando uma posição contracultural de
inclinação liberal.
É justamente essa posição que Caetano revê na entrevista.
Bial mostra um trecho do filme em que Caetano diz que, ao
contrário do que alegavam seus perseguidores na ditadura, nunca havia defendido
as experiências socialistas. Nesse momento, ressalta que, passados dois anos da
gravação, não pensa mais assim, porque havia sido persuadido pela obra de
Domenico Losurdo.
Losurdo é um dos principais responsáveis pela atual onda
revisionista sobre o legado de Stalin. Sua obra reconhece as violências do
stalinismo, mas as justifica e as contemporiza, comparando-as com violências
que teriam sido maiores na modernização capitalista.
Na entrevista, Caetano diz que sua nova posição não é reação
polarizada à ascensão da direita, mas a obra de Losurdo consiste justamente na
redenção dos campos de concentração, dos assassinatos políticos e da
perseguição aos dissidentes por meio da comparação com o regime adversário.
Depois de denunciar com firmeza o autoritarismo da ditadura
militar num depoimento oportuno, Caetano se rendeu à irresponsabilidade
narcísica, incensando o stalinismo.
Alguém esconda o espelho.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas
públicas da USP, é doutor em filosofia.
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