Deborah Duprat - Subprocuradora-geral da República aposentada
Claude Lefort, em “A Invenção Democrática – os limites do totalitarismo”, defende que o totalitarismo surge da democracia e, portanto, ele apenas se esclarece se captada a relação que ambos mantêm.
Segundo Lefort, a mutação essencial provocada pela “revolução democrática” é a desincorporação do poder, ou seja, não há poder ligado a um corpo, diferentemente do que se passava no Antigo Regime (anterior à Revolução Francesa). Neste, a sociedade representava para si sua unidade e identidade como a de um corpo, que encontrava a sua figuração no corpo do rei. É esse corpo duplo, a um só tempo individual e coletivo, que a revolução democrática vai destruir, mediante a desincorporação dos indivíduos. Cada um deles passa a ser unidades contábeis para um sufrágio universal que valem no lugar desse universal investido no corpo político.
Mas, se de um lado há a desincorporação do indivíduo, também a sociedade civil se separa do Estado. A democracia inaugura uma sociedade indomesticável, em que o povo, apesar de soberano, não cessa de questionar sua identidade. Por isso, para o filósofo francês, líderes populistas são uma impossibilidade democrática, ou melhor, a sua contraface, são totalitários. É que, ao pretenderem se apropriar do poder sob a capa da identificação com o povo, tornam invisível a linha de clivagem Estado-sociedade.
A quebra de distinção entre Estado e sociedade também implica a denegação do princípio da divisão interna da sociedade: a afirmação da totalidade é a negação da diferença, sendo impossível a formação de classes ou de quaisquer outros agrupamentos cujos interesses sejam antagônicos ao do Estado. É a noção mesma de uma heterogeneidade social que é recusada.
Analisando a formação do Estado totalitário na antiga URSS, afirma que o sucesso do partido bolchevique foi a sua capacidade de se identificar como um poder de ruptura radical com o passado e de fundação de um novo mundo —e competente para realizar a transformação social reivindicada a partir de um saber absoluto sobre a sociedade.
Daí por que o líder ou partido com vocações totalitárias tornam também invisíveis o que separa o poder político do poder administrativo. Todo o aparelho administrativo do Estado perde a sua independência e vai se desenvolver com a obstinação em destruir qualquer garantia de competência no espaço mesmo da burocracia. Afinal, apenas o líder detém o conhecimento de toda a história do povo e de sua vontade.
Além de desmontar os espaços institucionais de conhecimento, o líder totalitário instala uma incerteza radical em cada servidor, que jamais está seguro sobre as decisões a tomar e sobre os limites da autoridade de que dispõe.
A essa altura, é possível identificar os principais traços desse totalitarismo no governo Jair Bolsonaro: ele pretende totalizar o povo, borrando a distinção constitutiva da democracia entre Estado e sociedade civil; ele postula um povo indistinto, sem fissuras, e assim avança empírica e normativamente sobre a diversidade dos modos de vida existentes na sociedade nacional; e desorganiza a administração pública e confunde o político com a gestão pública.
São igualmente abundantes os episódios que demonstram ser Bolsonaro o detentor exclusivo de todo o conhecimento. Se alguma área técnica ousa fazer-lhe objeção, é sacrificada. No contexto da maior crise sanitária e econômica do país, é ele que prescreve medicamentos, decide sobre vacina e descumpre ostensivamente recomendações para conter a disseminação do vírus. Em meio à pandemia, foram-se dois ministros da Saúde, e o que permanece foi forçado a recuar quando decidiu pela aquisição de todas as vacinas cuja eficácia estivesse comprovada.
Bolsonaro desmontou toda a capacidade de atuação da administração pública federal e a distorceu quanto ao seu principal propósito constitucional: a instituição de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da desigualdade e da injustiça social.
Bolsonaro governa de forma totalitária e, portanto, antidemocrática e inconstitucional.
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