Um ensaio sobre a imbecilidade: o Brasil atual e a leitura de Ortega y Gasset
Ortega y Gasset, ainda na Espanha no início do século 20 relatou sua angústia e tomento com a experiência de entrar em contato com a imbecilidade e, perplexo, se perguntava o porquê de não haver um estudo sobre esse fenômeno… um “ensaio sobe a imbecilidade”. Passados quase 90 anos, muito se escreveu sobre esse comportamento humano, mas é hora de analisá-lo frente à realidade do Brasil de hoje.
Para os estudiosos do comportamento humano, a imbecilidade é consequência do desenvolvimento anormal da psique, condenando o indivíduo a uma eterna infância. Os imbecis são, portanto, pessoas de fácil sugestionabilidade, sendo que os paranoicos (portadores de outra patologia) exercem grande influência sobre eles, como adverte Enrico Altavilla: “cada paranoico que se tem passado por profeta, inventor ou coisa parecida, tem sempre conseguido arrastar alguns imbecis na órbita do seu delírio”.
Mas nos importa, aqui, a inserção desse elemento no corpo social.
Não é nova a perspectiva de que a sociedade nada mais é do que uma comunhão de pessoas que se comprometem em viver juntas, visando alguns resultados que interessem a todos. É vontade de convivência. Mas como toda organização, precisa de liderança.
Para o filósofo espanhol, a civilização só chegou a determinado estado de desenvolvimento social, científico, econômico e industrial porque foi liderada, na maioria das vezes, por personalidades que respeitaram o conhecimento histórico, que nada mais é do que a soma de valores, princípios e saber acumulados pelo ser humano em sua trajetória.
Destaca que os imbecis sempre existiram, estavam sempre presentes, mas não tinham qualquer papel fundamental na sociedade: eram desprezados.
Não se trata, ele explica, de fenômeno que tenha por origem qualquer diferenciação social ou econômica. O que diferencia os homens e os imbecis, segundo sustenta, é o espírito: para ele, há categoria de homens e mulheres que se exigem muito e acumulam sobre si dificuldades, deveres e insegurança e começam a “olhar o mundo com os olhos dilatados pela estranheza, pois todo mundo é estranho e maravilhoso para as pupilas bem abertas”.
Essa categoria de pessoas, explica o filosofo, constitui um grupo em constante estado de alerta para os fenômenos da vida, da cultura, da arte, da ciência e do conhecimento: “todo aquele que se colocar diante da existência em uma atitude séria, e se fizer plenamente responsável por ela, sentirá certo tipo de insegurança que lhe incita a permanecer alerta”.
Não é por outra razão que Albert Einstein, um exemplo de homem com esse espírito, deixou registrado: “o mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece essa sensação, ou não pode mais experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos se cegaram”.
Há, por outro lado, as massas, representadas pelo homem médio, aquele que é “herdeiro de um passado imenso e genial, em inspiração e esforços”, mas não aprendeu qualquer lição ou experiência do passado e não tem, portanto, qualquer comprometimento com os avanços da civilização.
Essa ausência de comprometimento com valores, ideias e com o próprio conhecimento histórico e científico gerou um ser humano bastante curioso: cioso da sua completude, não busca maiores explicações para aquilo que não conhece.
Surge, nesses casos, o ideal do homem médio, que compõe as massas: é o ser humano que sabe tudo, opina sobre tudo e tem razão em tudo.
Ao contrário do homem inseguro, que busca segurança nas lições do passado ou em outros homens que se esforçam nas suas áreas de conhecimento, o homem massa é imutável: “tem um repertório de ideias dentro de si. Decide se contentar com elas e se considerar intelectualmente completo”.
Destaca o filósofo que, durante a história da civilização ocidental, esse homem médio sempre foi maioria, sempre estava presente, mas completamente ausente da condução da vida pública. No entanto, ainda no século 20, externou preocupações sobre o papel, cada vez mais relevante, que esses imbecis passaram a exercer na sociedade.
Orgulhosamente descomprometido com o conhecimento científico, cultural e social, mas paradoxalmente cioso de que tem pleno conhecimento sobre todos os temas que envolvam uma sociedade, o homem massa visará sempre impor a sua verdade: é o primeiro passo para o estado de violência.
“A violência fascina os seres moralmente mais fracos”, advertiu Albert Einstein, para quem “o homem livre, criador e sensível modela o belo e exalta o sublime, ao passo que as massas continuam arrastadas por uma dança infernal de imbecilidade e de embrutecimento”.
Não há, portanto, como não reconhecer a identidade de visão do filósofo e do cientista sobre a estreita relação das massas e o estado de violência.
Aliás, essa correlação entre ignorância e violência coletiva é antiga, como nos alerta Diderot: “Desconfie do julgamento da multidão em assuntos de reflexão e filosofia; sua voz é aquela da maldade, da estupidez, desumanidade, irracionalidade e preconceito (…) A multidão é ignorante e estupefata (…) Desconfie dela em questões de moralidade; ela não é capaz de ações forte e generosas (…)”.
Assim, a busca e a valorização do conhecimento; o respeito ao saber histórico; a constante evolução científica e o culto a valores civilizatórios são características que distanciam a sociedade do estado de imbecilidade e de violência. Em uma palavra: educação.
E o que assistimos no Brasil, atualmente? É assustador constatar que a imbecilidade lidera o país e seu destino.
O papel das redes sociais e da evolução dos meios de comunicação em massa, de notícias falsas e outros mecanismos de universalização da desinformação tiveram papel fundamental no estado de imbecilidade atual da sociedade brasileira. Não há dúvida que o homem massa — cioso de suas verdades — encontrou mecanismo ideal de se conectar com outros homens massa, formando agora uma massa geral de homens que cultuam a violência, a ignorância, o não saber histórico e científico e o desapego a valores civilizatórios.
Umberto Eco anteviu esse fenômeno: “as mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano a coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.
Ainda que suas “verdades”, sua violência e seus “valores” não sejam compartilhados por toda a sociedade, é de se reconhecer que exercem, hoje, forte influência nos destinos do País… ou será que não?
O conhecimento científico é diariamente desprezado. O homem massa passa a defender que a terra não é redonda; passa a recomendar que não é preciso vacinar crianças e idosos; afirma que o isolamento social em época de Pandemia não tem efeitos no controle de contágio; passa a recomendar, genericamente, tratamentos e medicações ainda não reconhecidos pela sociedade científica, ou seja; resume o conhecimento e evolução científica da humanidade a nada. Cientistas sérios devem estar refletindo de que valeram centenas de anos de estudo, descobrimento, experimento, testes, sucesso e fracasso que levaram à evolução científica?
No campo das relações sociais e da convivência, o homem massa não mais esconde seu preconceito com as diferenças de identidade sexual, raça ou de cor da pele; faz piada com o tamanho de órgãos genitais dos asiáticos; faz piada com a forma de falar português dos chineses e com o tamanho das cabeças dos nordestinos; trata quem pensa diferente como inimigo; exalta a violência; despreza o sofrimento. Celebra-se o confronto, a morte e a desunião.
O modelo de sociedade do homem massa só pode triunfar na violência, na ignorância e na desinformação.
O saber histórico também passa a ser desprezado: para os imbecis não houve holocausto; não houve ditadura; nazismo foi de esquerda e o comunismo está implantado no país.
E a empatia? Aquela capacidade de se identificar com o sofrimento do outro? O imbecil é impermeável à empatia!
O filósofo Emmanuel Levinas prescreveu que, se o homem não caminhasse para uma emergência ética em relação ao outro, estaríamos destinados a viver novamente “tempos bárbaros”, denominados pelo sofrimento e pelo mal impostos de maneira deliberada… parece que não aprendemos nada.
O interessante é que a leitura de Hanna Arendtindica que, de fato, o homem é um ser político e viver em sociedade significaria que tudo deveria ser decidido “mediante palavras e persuasão, e não por força e violência”. O que diria sobre os tempos de hoje?
Na verdade, ela antecipou esse momento lamentável, ao afirmar que “a ausência de pensamento — despreocupação negligente, a confusão desesperada ou a repetição complacente de verdades que se tornaram triviais e vazias” — é uma das“características do nosso tempo”. A filósofa propõe uma solução: “o que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de pensar o que estamos fazendo…”
Pensar, portanto, é uma forma de combater o imbecil. O imbecil, já disse Ortega y Gasset, não pensa, não avalia o mundo, suas transformações e os aspectos imanentes dos avanços artísticos, intelectuais e científicos.
O imbecil, assim, está fadado à infantilidade: não consegue evoluir.
A violência cansa; a ciência sempre comprova sua importância; as instituições democráticas — muitas vezes criticáveis — retomam as rédeas de seu destino; o conhecimento avança; as lições do passado sempre serão relembradas.
Nesse momento, quando a centelha da lucidez impactar sobre a sociedade, o imbecil perderá sua força, mostrar-se-á como verdadeiramente é. Será desprezado e será ele mesmo, para seu desespero, exemplo para as gerações futuras, que deverão valorizar o reconhecimento histórico: um exemplo a não ser seguido.
Não há dúvidas, portanto, que se Ortega y Gasset presenciasse a realidade brasileira hoje, seria enfático: vocês estão sendo governados por imbecis!
Rodrigo Ribeiro Pereira é advogado e Mestre em Direito.
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