Apesar da insidiosa ofensiva populista, a democracia constitucional brasileira, aos trancos e barrancos, sobreviveu a mais um ano. E isso não é nada trivial. O mal afamado “presidencialismo de coalizão” impôs ao Executivo algumas derrotas importantes no Congresso Nacional, limitando o avanço de uma agenda legislativa mais regressiva e obscurantista. Nossa “supremocracia”, com todas suas idiossincrasias, também deu sua contribuição para que o negacionismo pandêmico e a ofensiva deliberada contra estruturas democráticas, grupos vulneráveis e bens coletivos —como o meio ambiente— encontrassem alguma resistência na letra da Constituição. A sociedade civil e a imprensa livre fizeram a sua parte, denunciando abusos e cobrando responsabilidades.
Esses esforços, por mais importantes que sejam, não foram evidentemente capazes de impedir algum grau de degradação da vida institucional brasileira. Populistas, por definição, são inimigos de todas as instituições que estabeleçam limites às suas ambições. Como aponta a experiência de outros países em que o populismo alcançou o poder, o processo de erosão da democracia e do Estado de Direito se agrava na medida que o tempo passa. Quando o avanço populista não é interrompido por eleições, como nos Estados Unidos, por pressão parlamentar, como na Itália, ou por vigilância judicial, a corrosão institucional vai fragilizando o sistema de freios e contrapesos e minando a energia e vitalidade de setores independentes do Estado, da sociedade e da economia.
A resistência imposta pelo Legislativo e pelo Judiciário no Brasil, ainda que moderada, tem levado o Executivo a empregar cada vez mais atos administrativos e eventualmente parainstitucionais para alcançar seus objetivos; fragilizando a promoção de direitos fundamentais, assim como deteriorando a capacidade técnica das burocracias de implementar políticas públicas e a integridade das agências de controle de aplicar a lei de maneira imparcial. Nomeações incompatíveis com objetivos institucionais, redução de orçamento, alteração de competências e supressão de participação social são apenas algumas as estratégias que buscam se evadir dos controles constitucionais.
O recente Rule of Law Index 2020, publicado pelo World Justice Project, que avaliou o funcionamento do governo das leis em 128 países, aponta que o Brasil foi o segundo país que mais regrediu em relação ao ano anterior, ficando atrás apenas da Argélia. Como todo índice de percepção, esse não é perfeito, mas tem a vantagem de apontar os nossos movimentos em relação a um grande número de países ao longo do tempo.
De acordo com o relatório, o Brasil regrediu nas oito categorias analisadas. As regressões mais significativas ocorreram no campo dos direitos fundamentais, onde houve declínio estatisticamente significativo na proteção do direito à vida e à segurança, à liberdade de expressão, religião, privacidade, associação e na proteção dos direitos trabalhistas. Mas também preocupam as dificuldades do legislador e das organizações da sociedade civil para inibirem ações do governo.
O Brasil sempre manteve uma relação conflituosa com o governo das leis. O populismo tem, no entanto, agravado essa tensão. Os próximos dois anos serão determinantes para que as perigosas derrapagens institucionais que temos testemunhado não aprofundem a erosão do governo das leis, colocando em risco a própria democracia.
Oscar Vilhena Vieira
Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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