O sarrafo deixado por 2020 é baixíssimo. Foi um ano contudo em que — como resposta à peste — criaram-se soluções para proteger a sociedade. Estado de calamidade. Orçamento de Guerra. Auxílio emergencial. Uma cadeia de calor. Ante exigências de exceção, respostas excepcionais rapidamente formuladas e viabilizadas por meio da atividade legislativa. Dois mil e vinte acabou. Levou consigo, formalmente, o estado de calamidade. Parece ter levado também o bom senso, já que se fala, como se o vírus não mais houvesse, em retomada da agenda de austeridade fiscal; e sobre nós baixa novamente o teto de gastos.
O vírus permanece, no entanto. O estado de calamidade na vida dos brasileiros permanece. Tudo indica que se alargará, sem o auxílio emergencial; cujo fim terá por efeito empurrar as pessoas à busca de emprego. Não há emprego. Há a segunda onda.
A fotografia perversa não nos autoriza ao otimismo: temos um estado de calamidade de súbito sem reconhecimento oficial, um encilhamento fiscal num país que precisa de indução da economia popular (ou será a fome), um vírus de circulação recrudescente, um Parlamento paralisado por disputa interna de poder e um governo calamitoso, cujo líder populista-autoritário — a só pensar em reeleição — fortalece-se no caos.
Sou a favor do teto de gastos. Considero importantes as amarras de uma âncora fiscal. Mas em condições normais. Não é o caso.
O sarrafo legado por 2020 é baixo, mas 2021 salta sem qualquer colchão — sem qualquer rede de amparo. A pobreza aumentará. A miséria se radicalizará. Tudo o mais constante, sem respostas organizadas pelo Estado, 2021 será o ano do agravamento da desigualdade num país já barbaramente desigual.
Há muito escuto sobre crescimento econômico em K num Brasil minado pela pandemia. Aí está. A perna que ascende sendo a dos mais ricos — para os quais, o palestrante Guedes tem razão, a ereção já é em V. A que desce, a do tombo dos mais pobres. Dois mil e vinte ecoará longamente na vida dos ferrados. O mundo real se imporá; ao qual se reagirá com improviso e populismo.
Sem estado de calamidade formal, prorroga-se o estado de calamidade real em que prospera um governo calamitoso; em que os pobres serão mais desprovidos e em que avançará um presidente-candidato que se alimenta de crise. Estão dados os gatilhos para respostas economicamente populistas. Em vez de discutir-se a revisão, a flexibilização, do teto de gastos, movimento necessário face à peste, investe-se nas circunstâncias inseguras para sua violação. Questão de tempo até que o governo abra o tesouro e gaste sem planejamento para enfrentar um surto de miséria que ajudou a encorpar.
Países não quebram. Mal governados, porém, pioram a vida dos seus. Mal governados, aí sim, quebram, depauperam, mesmo matam, os seus — os mais pobres. É o que produz Jair Bolsonaro por meio de rara combinação de irresponsabilidade e incompetência, conjunto potencializado pela febre reacionária do fenômeno que encarna.
O que produz Bolsonaro: sustentação, alongamento, do estado de calamidade informal — devastador de pobres — de que depende a competitividade de um governo, de um governante, calamitoso.
O Brasil não está quebrado, mas a economia não reagirá enquanto não houver vacinação. E quem é nosso principal agente antivacinação? Bolsonaro. Aquele que, se vitimizando, diz que nada consegue fazer. Consegue, sim. Deformar. Destruir. Mesmo sem trabalhar: corrompe. Nunca trabalhou, o dilapidador. E queria conseguir mais? Alguém capaz de declarar que o país está quebrado, admitindo a inação-impossibilidade do próprio governo, logo após dezessete dias fritando ao sol em férias, cujo auge consistiu naquela encenação de mergulho nos braços do povo.
Neste período de vadiagem, em que o presidente reforçou seu compromisso de boicotar o Programa Nacional de Imunização, de cuja eficiência depende a liberação da economia com que diz se preocupar, o Brasil não pagou uma dívida de US$ 292 milhões para aporte de capital no Novo Banco de Desenvolvimento, instituição financeira do Brics de que é sócio. Calote. O governo caloteiro, porém, botou a culpa no Congresso. É, de novo, expressão do tal “não consigo fazer nada”. A operação da velha forja de inimigos artificiais de que Bolsonaro precisa para cultivar suas milícias e disfarçar suas incapacidades.
Lembro que este é o presidente que, assim que assumiu, disparou que o Brasil era ingovernável. A culpa sendo sempre dos outros. Do establishment etc. Uma mentira muito influente, que circula mesmo ante os fatos. Por exemplo: a Câmara, que criminaliza (mas desde a qual construiria tremenda empresa familiar), votou com seu governo em 74% de suas matérias de interesse. Fato. A Câmara é governista. Contra o governo, joga o próprio governo.
A incompetência — tanto mais em meio a um estado de exceção — pode ser muito lucrativa. Gera oportunidades — também políticas — a um autocrata. Bolsonaro é um irresponsável. Não tem a menor ideia do que seja a Presidência da República, mas não ignora o alcance da palavra do presidente difundindo-se no zap-profundo. Países não quebram. Mas instituições são corrompidas desde dentro. Países não quebram. Quebram as gentes. Matam.
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