sábado, 2 de janeiro de 2021

O GAMBITO DA RAINHA

Marcus Pestana, O Tempo

As séries veiculadas pelas plataformas de streaming viraram verdadeira febre. Entre tantas opções de sucesso como “A Casa de Papel” ou “The Crown”, uma recentemente se destacou: “O Gambito da Rainha”. Já se tornou a série mais assistida da história da Netflix. Ao mergulhar no milenar e complexo universo do xadrez, através da trajetória de Elizabeth Harmon, a jovem órfã e brilhante enxadrista, evoca a arte de traçar estratégias, ativar manobras, montar artimanhas para vencer o adversário. Às vezes entregando uma de suas próprias peças. 

Sempre associei a política ao xadrez. A verdadeira política deve ter a sutileza, a astúcia e a inteligência do xadrez. Infelizmente, ela tem se assemelhado mais a uma luta de UFC ou a uma partida de rúgbi.

Entramos em 2021 com a política brasileira dividida entre quatro grandes campos: o bolsonarista, o do “centrão”, o polo democrático e a esquerda.

O bolsonarismo galvanizou nas últimas eleições presidenciais a rejeição à chamada “velha política” tradicional. Cacifado pelo voto popular, abriu mão do “presidencialismo de coalização” e tentou governar sem maioria parlamentar e através de uma política de confrontação com o Congresso e o STF. Agora, tendo jogado o lavajatismo ao mar, e preocupado com a instabilidade política excessiva, o bolsonarismo tenta dar um freio de arrumação tecendo aliança política com o que há de mais representativo da mesma “velha política” tão condenada em 2018. O gambito da rainha de Bolsonaro seria sacrificar o discurso renovador para derrotar a oposição democrática e de esquerda.

O “centrão” é formado por um conjunto de partidos que têm historicamente postura pragmática, patrimonialista e não ideológica. Funcionam como um pêndulo de governabilidade. Podem servir a governos díspares como os de Sarney, FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro, desde de que tenham acesso a verbas, cargos e espaços políticos. Aproveitam a fragilidade do governo Bolsonaro para recuperar espaços perdidos.

O polo democrático formado pelo DEM, PSDB, MDB, Cidadania, entre outros, defende a agenda econômica modernizante, mas não se alinha aos arroubos autoritários do governo e defende radicalmente a democracia, suas instituições, o combate às desigualdades e políticas alternativas nas relações exteriores, no meio ambiente, na educação, segurança e saúde. Liderado por Rodrigo Maia, tem sido o grande pilar da defesa da ordem constitucional e das reformas necessários. O seu gambito da rainha é a abertura de diálogo com a esquerda, sacrificando parte de sua base social, para manter a autonomia e o protagonismo do Congresso e seu papel de freio e contrapeso às tentativas “iliberais” de retrocesso.

A esquerda, em rota descendente desde 2015, reaparece no vácuo deixado pelo governo. Tenta se reposicionar e ampliar seu campo de diálogo. O gambito da rainha das esquerdas é sacrificar um pouco de sua identidade e da narrativa do “golpe” de 2016 para reconstruir pontes e quem sabe angariar o apoio do centro democrático num possível segundo turno de 2022.

Como os enxadristas sabem o gambito pode ser aceito ou recusado e os cenários de jogo são imprevisíveis. Que o desfecho do xadrez político, que terá seu próximo lance nas eleições das Mesas da Câmara e do Senado, reafirme a vitória dos valores da liberdade, da democracia e do desenvolvimento social.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)

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