Que bom seria se todos cumprissem a Constituição da República. Não teríamos os atropelos que hoje se verificam no Brasil. Se cada um, especialmente as autoridades constituídas, se mantivessem no exercício das tarefas determinadas pela Lei Magna, o mundo seria outro.
Tornou-se inafastável registrar o óbvio. Primeiro, é que a Constituição é o documento que organiza um povo num determinado território. São regras imperativas, cogentes, das quais ninguém, especialmente os que dirigem os negócios públicos, podem afastar-se. Até porque a única autoridade existente é o povo. Só tem autoridade quem tem poder. Os cidadãos comuns são súditos do Estado. As autoridades públicas são as que dirigem o País. São os que exercem o poder orgânico (Legislativo, Executivo e Judiciário) e espacial (União, Estados, municípios e Distrito Federal). São autoridades constituídas. Não são primárias, são secundárias, derivadas. Tanto ou mais do que os súditos, devem prestar obediência rigorosa ao que determina a Lei Maior. Essas autoridades têm dever mais acentuado do que os súditos porque seus gestos governativos podem causar prejuízo à coletividade. Não é sem razão que o particular pode fazer tudo o que não é proibido, ao passo que a autoridade pública só pode fazer o que é permitido pelo Direito.
No Brasil de hoje há discordância radical que atinge o nível da pessoalidade entre os brasileiros. Há ódios latentes e explicitados entre pessoas e instituições. A Constituição não os autoriza. Ao contrário. Logo no preâmbulo (antes de entrar no texto) existem as palavras paz e pacificação tanto nas relações internas como internacionais. É importante a alusão ao preâmbulo porque ele dá a motivação política que produziu o texto constitucional. Mas na Constituição está escrito que todos são iguais perante a lei, não podendo haver distinção de qualquer natureza entre pessoas e credos. Recado constitucional: unam-se todos. Em outro trecho está dito que os artefatos nucleares só podem ser utilizados para fins pacíficos. Nada de belicosidade.
Outro ponto: a Constituição determina a harmonia entre os órgãos do poder. Essa harmonia deriva do diálogo entre os Poderes. Desarmonia significa violação da vontade proclamada pela soberania popular. Portanto, inconstitucionalidade.
No Estado democrático, uma das suas âncoras é o Judiciário, cuja tônica há de ser a imparcialidade, que vem de in-parte, ou seja, não é parte interessada no litígio. Se tenho violação de um direito meu, sei que posso dirigir-me a ele, sabendo-o isento e imparcial, para aplicar o Direito tal como positivado, e não segundo inclinações públicas ou publicadas. Neste momento, convém anotar que nós temos o mais longo capítulo de direitos individuais que o mundo conhece. São 78 incisos do artigo 5.º, que não são exaustivos. São exemplificativos, já que seu parágrafo 2.º diz que outros podem ser invocados.
Tome-se o caso da nobre instituição do Ministério Público. Competem-lhe funções relevantíssimas, entre as quais a de manter a ordem democrática, preservar a probidade administrativa, aplicando corretamente o fenômeno chamado justiça, que nada mais é do que a aplicação correta do sistema normativo. Ele é promotor de justiça. Portanto, cabe-lhe promover a justiça. E justiça é o que deriva do texto constitucional. O que se vê muitas vezes, lamentavelmente, é o Ministério Público fazendo as vezes de “parte” que busca simplesmente “ganhar” a questão. Aliás, está escrito na Constituição, que o Ministério Público tem autonomia “funcional”. Nas funções do órgão Ministério Público ninguém pode interferir. Entretanto, interpretou-se essa autonomia como sendo individual, podendo cada membro agir da maneira que lhe seja conveniente.
Esse fato da individualização se estendeu a outros órgãos da administração, sempre em busca de poder.
Toda essa forma de proceder resultou em grande instabilidade jurídico-institucional. Vejam-se os últimos acontecimentos, quando uma incompetência processual foi decretada quase cinco anos depois, além de se levantar o tema da suspeição que está sob exame. Será que isso não derivou de as pessoas não estarem nos seus papéis jurídico-constitucionais?
Outro exemplo é o caso da pandemia. A solução constitucional é simples. Está dito na Carta Magna que a União edita normas gerais e, concorrentemente, os Estados editam normas especiais, de acordo com as realidades locais, e os municípios ainda podem suplementar, na saúde, a legislação federal e estadual.
Essas dicções estão solarmente estampadas no texto constitucional. Mas a tendência a ignorá-las e sair, permitam-me dizer, do “seu quadrado” é que provocou todas as distorções de que hoje todos somos vítimas. Fala-se, aliás, muito em segurança jurídica, como se esse fosse um conceito desapegado da ordem normativa. Mas não é. A sua solução tem a mesma singeleza de tudo quanto inicialmente já escrevi. Segurança jurídica vem do cumprimento rigoroso da ordem jurídica. Por isso reitero a proclamação: fora da Constituição não há solução.
*Advogado, professor de Direito Constitucional, foi presidente da República
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