Louco ou cruel – Deveríamos torcer pela sanidade dos genocidas, para que sejam responsabilizados
Um dos marcos iniciais da civilização deve ter sido um hominídeo apartando uma briga. Não sei se esse comportamento apaziguador ocorre em alguma outra espécie: alguém entrar numa escaramuça que não é sua e colocar a própria segurança em risco sem uma necessidade pessoal.
Acho que só começamos a fazer isso quando transcendemos nossa individualidade e tomamos consciência de bens maiores que nós mesmos. Preservação da vida dos mais fracos, garantia de justiça, manutenção da coesão do bando. Com o alvorecer da consciência nos agrupamentos humanos, devem ter emergido as regras, inicialmente implícitas, intuitivas, e conforme caminhávamos em direção ao aperfeiçoamento tecnológico surgiam as regras escritas, leis, códigos. O combinado coletivo do que pode e não pode.
Em algum momento, a humanidade se deu conta de não ser possível esperar que esse acordo geral fosse cumprido por todo mundo. Há relatos de julgamentos formais de animais, de crianças, mas chegou a uma hora em que percebemos a futilidade disso. Para que haja adesão ao contrato social há de se ter racionalidade. Animais obviamente não estavam no jogo.
Entre os seres humanos, as crianças não tinham discernimento suficiente para compreender as leis, muito menos maturidade para dirigir seu comportamento de acordo com elas. Na outra ponta da vida, muitas pessoas perdiam progressivamente essas faculdades, em virtude do envelhecimento não saudável, e não parecia justo responsabilizá-las por seus atos da mesma maneira. Crianças e idosos senis, como eram chamados, careciam então de responsabilidade penal.
Não apenas eles. Entre os extremos da idade também havia pessoas que, tornava-se claro, não eram dotadas das mesmas capacidades mentais que os outros. Antes mesmo de haver enquadres médicos para os transtornos mentais ou para o déficit intelectual os juízes podiam isentar de culpa as pessoas com base nos relatos sobre seus comportamentos estranhos testemunhados pela comunidade.
Foi só quando a perda da razão se tornou matéria de saúde que as pessoas vivendo alienadas da realidade passaram a ser objeto de cuidado dos médicos – não por acaso, alienistas. A eles passou então a incumbência de determinar se alguém em conflito com a lei teria ou não integridade mental suficiente para ser chamado às responsabilidades.
Essa pode ser uma tarefa traiçoeira para nós, psiquiatras. Claro que a linha que separa o comportamento normal do patológico às vezes é muito evidente, basta olhar que os sinais estão ali. Em outros momentos vê-se com clareza que tal linha não foi cruzada. O problema está na zona cinzenta intermediária, na qual os limites ficam borrados.
Isso acontece usualmente em situações nas quais os comportamentos são anormais, no sentido de fugir à norma, serem excêntricos, fora do padrão, mas não são claramente patológicos – não parecem ter fugido ao controle do indivíduo. O senso comum aponta para a loucura, mas na avaliação técnica faltam elementos para caracterizar o verdadeiro adoecimento psíquico.
Daí que o fulcro de tais avaliações médicas não é, nem pode ser, determinar o quão cruéis, desumanas ou mesmo genocidas são as ações do criminoso. O fundamental é determinar se tinha a compreensão de seus atos e suas consequências e, em tendo, se agiu por livre escolha. Ou seja, se sabia o que estava fazendo e se fez porque quis.
Colocar em xeque a sanidade dos líderes que cometeram crimes contra a humanidade é delicado. Entre a insanidade evidente de Nero e a crueldade explícita de Gengis Khan encontraremos outros genocidas como Adolf Hitler, cujos comportamentos são tão anormais que parecem insanos, mas que agem deliberadamente e sabem o que estão fazendo. Enquadrá-los como doentes, além do mais, é uma faca de dois gumes, pois se serve para desqualificar seus atos serve também para os eximir da responsabilidade por eles.
Nós deveríamos torcer pela sanidade dos genocidas, para que sejam plenamente responsabilizados por seus atos. Porque o desprezo à vida, a insensibilidade com o sofrimento, a indiferença com a morte, não são sinais de loucura. São sinais de alerta.
É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO E INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (FMUSP)
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