quarta-feira, 17 de março de 2021

VIRAMOS JACARÉ ?

Roberto DaMatta, O GLOBO

Meu senso de antropólogo cultural antigo e de não especialista (hoje, o Brasil é a pátria desses maravilhosos profissionais) prevê que teremos múltiplas vacinas contra o competidor biológico maior, a Covid-19, com suas famílias e linhagens que o governo Bolsonaro incrementa por meio de um pueril negacionismo e por uma adulta e criminosa sabotagem.

O vírus, não custa repetir, além de ser um agente epidêmico mortal e sem intenções (exceto sobreviver), é — tal como as nossas elites, de que somos parte e parcela — um predador invisível e solerte.

Aliás, conforme escreveu um “especialista” chamado Charles Darwin, no mundo natural, além de uma perturbadora ausência de intenção (ou causa final) e de uma óbvia presença de oportunidade, quem melhor se adapta e mais se reproduz triunfa.

O significado dessa desgraçada vitória, devo logo dizer antes que me levem à guilhotina moral, é a grande questão do nosso mundo, já que, de modo claro, ela suprime um outro mundo, uma outra vida e — quem sabe? — engendra uma história alternativa…

Se levamos a sério as premissas darwinistas, cabe honrar ao menos “este mundo” de que estamos certos e onde atuamos. Pois o fato inexorável é o seguinte: se tudo ocorreu ao acaso num planeta igualmente singular, posto que ele próprio é “vivo”, o sentido final da existência não precisa ser justificado por uma outra vida. Ela tem que fazer sentido aqui e agora, como demandam o vírus, os sanitaristas e todos os inesperados. Acima de tudo, os inesperados paradoxalmente previstos (e planejados) dos abismos entre quem tem demais e os despossuídos.

Não é preciso ser um sábio para dirimir os abismos sociais do Brasil. Eles saltam aos olhos quando saímos de casa — se casa temos…

Nesta etapa antropocênica — em que a pandemia impede, entre outras dimensões, que se possam disfarçar as imensas desigualdades mundiais, os vergonhosos abismos sociointelectuais nacionais e os transtornos de um planeta agredido por “empreendedores” esquecidos de que são por ele englobados e foram por ele engendrados —, não há a menor dúvida de que a espécie triunfante, o Homo sapiens, é ao mesmo tempo Deus e algoz do mundo que habita e dele mesmo.

Diz um celebrado mestre-pensador (Claude Lévi-Strauss) que, graças à invenção da linguagem articulada e dos costumes, somos um superpredador com um trajeto semelhante ao do câncer, porque conseguimos uma multiplicação além da Bíblia. Hoje somos onipresentes. A onisciência e a onipotência que nos tornariam divinos está em nossa volta e se afirmam nos laboratórios e nas “armas de destruição em massa”, esse eufemismo para artefatos com o poder de simplesmente assassinar o planeta em nome de alguma desavença nacional!

Avaliando com minha óbvia insuficiência essas pressões, tenho, não obstante, um temor de idoso: imagino, conforme confesso ao meu filho Renato, um consumado biólogo, pesquisador e professor universitário, que o vírus pode ter vindo para ficar.

O que significa esse “ficar” quando o ideal de conforto, satisfação e dignidade depende de um rude individualismo (primeiro eu, depois os meus e em seguida quem pensa e faz como eu!) — uma consciência do mundo que convenientemente inibe reciprocidades, interdependências e só imagina o outro como adversário ou inimigo a ser eliminado (ou cancelado, como se diz atualmente)?

Não deixa de ser paradoxal que o lado mais perturbador do vírus seja sua potência de bloquear o que nos tornou humanos: a sociabilidade ancorada na presença do outro. A dialética da costumeiro e do exótico — do encontro interessado ou espontâneo. Enfim, o que originou as grandes descobertas, inclusive a desses bichos invisíveis que existem ao nosso lado e interagem conosco porque são tão antigos quanto nós.

A habitual negação e a sabotagem do vírus no Brasil — cujo maior responsável é uma atitude emocional e irracional do presidente Bolsonaro e de seus seguidores —não são só um ato de desgoverno desses que permeiam e estruturam a admiração nacional desde que nos entendemos como um coletivo; são um risco para a Humanidade.

Certo que Adão não foi criado no Brasil, mas é igualmente verdadeiro que a Humanidade pode ser radicalmente ameaçada a partir de nossa cuidadosa e precisa negligência negacionista. De nossa incapacidade de realizarmos uma leitura mais abrangente de nosso lugar na Terra.

Enfim, se não nos conscientizarmos do perigo que estamos causando a todo o planeta; se não nos dermos conta de que o vírus impede o comércio, a aliança, a troca em todos os seus níveis que nos fizeram humanos, então vamos virar jacarés.

Cumpriremos um dos mais devastadores vaticínios do mais insensível presidente da nossa história.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário