segunda-feira, 12 de abril de 2021

"NÃO PODE SER O CANDIDATO DA ELITE"

Cristiano Romero, Valor Econômico

BRASÍLIA – Na polarização que se desenha para a eleição de 2022, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) afirma ser possível criar o “espaço” para uma terceira via competitiva que enfrente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual, Jair Bolsonaro (sem partido). Desde que a alternativa construa esse “espaço” com um forte discurso de “progresso econômico”, que conheça a realidade brasileira e não seja “anódina”. “É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite”, defende, em entrevista ao Valor.

Para FHC, o Brasil “gosta de novidade” e a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos é “positiva” por refletir “aqui de alguma forma” a possibilidade de se escolher “uma candidatura que seja equilibrada”. O ex-presidente almeja, mas não enxerga no momento o portador do perfil ideal para combater Lula e Bolsonaro em 2022: alguém que exerça liderança nacional, “atenda aos mais pobres” e seja popular.

“Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição”, diz. “Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas eles não simbolizam nada nacionalmente”, acrescenta FHC, correligionário dos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, pré-candidatos na corrida presidencial.

Para o tucano, “política não se faz com o passado”, mas com o futuro. Apesar disso, a disputa em 2022, afirma, pode favorecer Lula. Em sua opinião, o petista, na falta de uma terceira via competitiva, pode aglutinar forças do centro. “Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo”, diz o tucano, que tampouco é a favor do impeachment de Bolsonaro. “Estamos muito longe de uma situação de impeachment. Bolsonaro está governando. Então, acho que é insensato”, disse.

A seguir, leia os principais trechos da entrevista ao Valor:

Valor: O senhor imaginou que o Brasil fosse se tornar o epicentro da pandemia?

Fernando Henrique Cardoso: Na minha casa falavam muito da gripe espanhola, que foi algo muito difícil, mas nunca mais se falou de uma pandemia no sentido que temos hoje. As pessoas não estavam, em geral, preparadas para isso. Quando o governo não sinaliza a gravidade, é pior. A situação é muito complicada, o número de mortos não para de crescer. E o pior é que os pequenos negócios na economia estão fechando, todo mundo está sofrendo as consequências e vai sofrer por muito tempo ainda.

Valor: Como estaremos depois da pandemia?

FHC: Não sei o que vai acontecer porque, neste momento, todos querem salvar a própria pele, todo mundo pensando em si mesmo, depois vai pensar na vida. E a vida é o trabalho, a política. O Brasil é curioso porque tem um serviço de saúde bom. Quando eu era criança, aqui só havia as santas casas de misericórdia e olhe lá. Hoje, temos o SUS e ele funciona, atende às pessoas. Eu uso o SUS.

Valor: Mas o senhor é bem atendido porque é ex-presidente.

FHC: Espero que sim, mas a cama é a mesma, os lençóis são os mesmos, os médicos, enfim, o SUS é razoável.

Valor: O que está faltando?

FHC: Confiança. É difícil manter a confiança numa situação dessas. E com o nosso presidente que acha que a pandemia é uma gripezinha, ninguém acredita em nada. Agora, isso não para a vida política. Ainda bem que tem eleição, mas sempre repito: política não se faz com o passado.

Valor: Não?

FHC: Não. Política se faz com o futuro. O que você apresenta, qual é o caminho. Num país como o Brasil, isso é mais forte.

Valor: Por quê?

FHC: Porque aqui não tem partido para disciplinar os políticos. O povo vai atrás de pessoas que expressam aquele momento. Neste momento, você olha em volta e vê falta de quem expresse alguma coisa. Vamos ver quem, depois da pandemia, vai expressar o momento novo do Brasil. É um país que tem futuro, tem riqueza, tem gente.

Valor: Mas não cresce há sete anos.

FHC: O problema fundamental é retomar o crescimento, mas diminuir a desigualdade, que é muito grande. Quando falam do meu governo, dizem: “Ele fez o Plano Real”. O real foi importante, mas fiz a reforma agrária, algo que tem um peso grande para a população. A educação melhorou bastante, Paulo Renato [de Souza] era um bom ministro; a saúde, onde o [José] Serra foi um bom ministro, antes dele o [Adib] Jatene, deu um salto grande. Comecei a reforma fiscal para enfrentar o déficit público, que sempre existiu e agora vai aumentar.

Valor: Bolsonaro, ex-deputado sem grandes pretensões políticas, rompeu com a polarização PSDB-PT que prevaleceu de 1994 a 2018. Como se explica isso?

FHC: Bolsonaro veio como o anti-PT. O pessoal ficou com medo da vitória do PT.

Valor: Medo do que exatamente?

FHC: O medo não estava baseado propriamente em fatos, mas muito mais na pintura que se fazia das coisas. Na verdade, quando foi presidente, Lula governou de acordo com o mercado. A presidente Dilma [Rousseff] foi mais voluntariosa, mas não fez nada que fosse contra os interesses predominantes. Ela podia ser menos capacitada que o Lula para lidar com a máquina pública.

Valor: Onde o senhor acha que a ex-presidente errou?

FHC: Ela rompeu [com o modelo macroeconômico herdado de Lula], sobretudo, no segundo mandato [2015-2016], quando fez outra coisa. A Dilma era mais estatizante que o Lula.

Valor: Lula manteve o modelo adotado em seu governo e, inclusive, o aperfeiçoou. Um exemplo foi a acumulação de reservas cambiais. Como o senhor o define?

FHC: O Lula é prático. Eu o conheci bastante quando ele era dirigente sindical. Ele é inteligente, sensível e prático. Sempre teve mais amor ao capital, mas nunca deixou de olhar para o povo, sempre fez uma mescla das duas coisas. É mais paulista: “O governo faz, mas quem faz também é o mercado”. Com a Dilma, é mais Estado. Não deu certo não só por ser Estado, mas também porque a conjuntura não favoreceu. Bolsonaro se elegeu na base de que é um liberal.

Valor: Ele é um liberal?

FHC: Não é liberal. É um militar e eu conheço bem os militares. Meu pai era general e meu avô, marechal. Nada contra isso, mas conheço a mentalidade militar deles, que é mais Estado. No caso do presidente, ele é capitão, então, é mais reivindicativo ainda. Nunca falei com ele, mas lembro que ele era um ser reivindicante, queria coisas para os militares. Não me parece que ele tenha grandes habilidades políticas.

Valor: Mas foi eleito presidente.

FHC: Sempre disse: quem tem votos eu respeito. Ele foi eleito. Sou visceralmente antigolpe. Nossa sociedade provou o gostinho da liberdade, é difícil voltar atrás.

Valor: O senhor não vê risco de golpe da parte do presidente?

FHC: Acho que não tem. Ele pode ter o ímpeto que tiver, não sei qual é o ímpeto dele, mas não pega. É difícil você botar um país do tamanho do Brasil na risca, tem que ter um partido. Aqui não tem nem partido nem de esquerda nem de direita.

Valor: E os partidos que chegaram ao poder, como PT e PSDB, são hoje bem menores do que eram, o que mostra que a fragmentação das legendas continua aumentando.

FHC: Além da fragmentação partidária, temos tradição de seguir o líder, de seguir pessoas. Bolsonaro, querendo ou não, tem liderança, o Lula também. Estão pregando a necessidade de localizar o centro. Depende de pessoas. Quem é? Não pode ser um centro anódino. Isso não pega na política.

Valor: Quem teria esse perfil?

FHC: Tem que ser alguém que faça a economia crescer e dê emprego para quem precise e atenda aos mais pobres. É fácil falar e difícil fazer, mas tem que simbolizar isso. Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas não simbolizam nada nacionalmente.

Valor: É torcedor do Fluminense ou do Flamengo?

FHC: Eu era mais Fluminense, mas estava errado. Era melhor ter sido mais Flamengo… Quando fui candidato à Presidência [em 1994], Marcello Alencar era [candidato a] governador do Rio. Ele tinha força na Baixada Fluminense e me levou a uma cidade da região. No [Estado do] Rio, não conhecia nada; mais Niterói. Era assustador para mim.

Valor: Por quê?

FHC: Fui a um lugar onde tinha um bar, uma escadinha, por onde subimos e chegamos a uma sala grande, meio escura, onde estavam os “chefes” da Baixada, todos com pulseiras e colares de ouro. Eu era ministro da Fazenda. Conhece a Ana Tavares [então assessora especial]? Ana ia comigo e dizia: “Não vai falar com fulano!”. Eu dizia: “Ana, eu tenho que falar”. É complicado. Nossos líderes que estão aí têm que conhecer o Brasil. Eu tinha algum conhecimento de Brasil porque, primeiro, fui sociólogo. Minha mãe nasceu em Manaus. Minha família, por parte de mãe, é de Alagoas. Meu pai nasceu no Paraná, mas a família é de Goiás. Você tem que conhecer essa realidade, a diversidade que é o Brasil. Não adianta saber pelos livros, tem que ter contato com as pessoas. Ser líder político no Brasil não é fácil.

Valor: Como assim?

FHC: Bolsonaro tem a vantagem de ser capitão da reserva. Não sei o quanto ele andou pelo país, mas, mesmo que não tenha feito isso, eles [os militares] têm um certo conhecimento da realidade. Algum conhecimento do povo o líder político tem que ter. Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição. Os que estão aí e que são possíveis candidatos podem vir a ter, mas têm que obrigatoriamente vir a ter.

Valor: O senhor disse que ficou assustado com o encontro na Baixada Fluminense. Como foi?

FHC: Ah, chegou uma hora, depois de me ouvirem, que um deles disse: “Eu aposto não sei quanto nesse menino aí”. O menino era eu [com 63 anos na época]! Andei muito na Baixada com o Zito [José Camilo Zito dos Santos Filho, ex-prefeito de Duque de Caxias]. É muito importante falar com todo mundo e isso, que as pessoas pensam que é fácil, não é. Quando era presidente, eu falava com os motoristas, o sujeito que tomava conta da piscina [do Palácio da Alvorada], a moça que cuidava das flores, que se chama Dalina… Eu queria saber como as pessoas simples sentem a vida. Como não há estrutura partidária que sustente uma candidatura, é você que tem que se projetar. Projetar é jogar para fora, não é ficar para dentro. É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite. Se ficar só na elite, está perdido.

Valor: Pesquisas mostram que, com a volta de Lula, neste momento a disputa de 2022 está entre ele e Bolsonaro. Há espaço para uma terceira candidatura, de centro?

FHC: Em política, o espaço é criado. Não está dado. Eu gostaria que houvesse alguém que criasse esse espaço. A maioria [dos eleitores] não é uma coisa nem outra, então, alguém tem que criar. No Brasil, o importante é o progresso econômico. Os que são espertos, Bolsonaro e Lula, ganharam espaço porque tiveram a capacidade de demonstrar [que conhecem a realidade].

Valor: Terão a mesma capacidade agora?

FHC: O Brasil gosta de novidade. Depende de aparecer uma novidade que seja palatável para a maioria da população. O mundo hoje é um mundo mais calmo, não tem expectativa de guerra. Isso reflete aqui de alguma maneira. Ganhou nos Estados Unidos o [Joe] Biden. Isso para nós é positivo porque não foi o extremo que ganhou. Então, há condições para uma candidatura que seja equilibrada, que não seja do extremo.

Valor: Lula é do extremo?

FHC: Não estou dizendo que Lula seja de extremo porque ele não é. Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo. O Lula é inteligente, pegou no ar, aprendeu. O que ele vai simbolizar? Não sei. O que foi que ele simbolizou com o governo? Foi uma época feliz da vida no Brasil. E a economia foi bem. Mas ele não vai simbolizar o que vão dizer que ele simboliza, que é o socialismo, o comunismo, o Lula vermelho.

Valor: O que a sociedade tem a seu alcance para lidar com um presidente que nega a gravidade da pandemia desde o início e, por isso, não comprou a vacina ao tempo?

FHC: Ele vai pagar um preço por isso se houver alguém que diga isso, com força. Se não houver, não adianta. Política é sempre assim.

Valor: O governador de São Paulo, João Doria, está fazendo isso e o resultado tem sido o oposto. O Estado produz a vacina, mas esta tem que ser entregue ao governo federal para distribuição nacional. Como o governo atrasa a importação de vacina, o governador tem que fazer “lockdown” e isso derruba sua popularidade. Ele não corre risco de perder a reeleição?

FHC: Pode ser que ele ganhe de novo, pode ser. Por enquanto, quem está pagando um preço elevado [pela falta de vacinas] são os governadores. Você sabe como é o povo aqui. O povo não olha quem está tão lá em cima.

Valor: Quando começar a imunização em massa, Bolsonaro não pode se tornar o “pai” da vacina?

FHC: Quem for o pai da vacina terá vantagem eleitoral enorme, mas, isso hoje. Não sei daqui a um ano, porque as pessoas esquecem.

Valor: Em 36 anos de redemocratização, tivemos dois presidentes afastados por impeachment. Nossa democracia é frágil?

FHC: Não. Acho que já está consolidada, o povo gostou da liberdade de escolher. Eu acho difícil que dê marcha à ré. Não é impossível. Como dizia Otávio Mangabeira [ex-governador da Bahia], “a democracia é uma plantinha tenra que tem que ser regada todo dia”.

Valor: O senhor apoiaria Lula?

FHC: No segundo turno, se ficar o Lula contra o Bolsonaro, não sei se o PSDB vai fazer isso… Se depender da minha inclinação, iria nessa direção, com muita dificuldade porque o Lula jogava pedra em mim.

Valor: Mas ele ainda joga?

FHC: Não, ultimamente não tem jogado, porque ele não precisa.

Valor: As condenações, agora anuladas, e a prisão de Lula o tiraram da eleição de 2018. O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro é acusado de ter agido politicamente. Como o senhor avalia isso?

FHC: É isso aí, o Moro fez isso. Acho que ele fez um erro ao aceitar ser ministro. Ele mostrou, na época da Lava-Jato, sua importância no combate à corrupção. É importante, é verdadeiro. Mas, depois, entrou no jogo de poder. Não é a dele. Ele é um bom juiz. O jogo do poder é um jogo difícil e ganhar do Lula não é brincadeira, é difícil. Ele sabe. Lula segue a regra. Instintivamente, ele sempre faz isso. Isso não quer dizer que o outro lado não possa transformar o Lula num fantasma outra vez. Pode, independentemente do Lula. É claro que eu não vou contribuir para isso nunca.

Valor: Para onde vai o PSDB, que, assim como o PT, se enfraqueceu e sem dividiu nos últimos anos?

FHC: Unir o PSDB é uma tarefa sempre difícil. E não sei se se deveria perder muito tempo com isso, porque não são os partidos que elegem os governantes. Eu me dou com o Doria. Sou amigo dele há muito tempo. Conheço pouco o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é do PSDB também. Ele tem bom nome também. Agora, é mais recente e o Sul é longe do centro. Mas vai ficar entre esses dois, você vai ver.

Valor: E o Luciano Huck?

FHC: Eu o conheço bem, sou amigo da mãe e do padrasto dele. Não sei… Ele vai ter que decidir agora. Ele teria que queimar a vela e deixar a [Rede] Globo. É agora. Se ele tomar a decisão e se jogar, tem condição de se transformar num político. Mas tem que se transformar num político, naquilo que os outros já são. Não é tão simples assim. Ele tem mais popularidade do que qualquer deles, hoje. Ter popularidade é uma coisa, ser líder político não é a mesma coisa. É bom ter popularidade, mas tem que ser como líder político. Eu não quero dizer que ele não possa, mas ele vai ter que mostrar que pode se transformar em um líder político. Custa mais a ele do que aos outros porque os outros já queimaram as velas.

Valor: O senhor acha que há motivos para um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro?

FHC: Nunca fui favorável à ideia que você trabalhasse pelo impeachment. É golpe, de outra maneira. Na situação da Dilma, ela mesma inviabilizou. Mas agora estamos muito longe de uma situação de impeachment. Ele está governando. Então eu acho que é insensato.

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