Deve ter sido extremamente doloroso para Vladimir Putin, já então presidente da Rússia em 2004, assistir às ex-repúblicas soviéticas que compunham o Pacto de Varsóvia – exceto a Federação Russa, claro – serem integradas à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e à União Europeia (UE). Basta lembrar que o presidente russo, um ex-agente da KGB, costuma se referir ao colapso da antiga União Soviética, em 1991, como “o grande desastre geopolítico do século 20”.
Não surpreende, portanto, que alguém com o perfil de Vladimir Putin demonstre total menosprezo pela alternância de poder, um dos atributos mais elementares de uma nação democrática. Desde que ascendeu ao Kremlin pelas mãos de Boris Yeltsin, em 1999, Putin vinha encontrando meios de driblar a proibição constitucional de concorrer a um novo mandato após uma reeleição. Para um saudoso dos tempos soviéticos, abrir mão do poder após derrota em uma eleição livre e justa é algo inconcebível. Pelo que indica o conjunto de suas manobras, na cabeça de Putin não parece haver futuro para a Mãe Rússia sem que ele, pessoalmente ou por meio de interposta pessoa, determine os rumos do país.
Proibido de concorrer a um terceiro mandato consecutivo em 2008, Putin alçou um títere à presidência da Rússia, seu aliado Dmitri Medvedev, mas criou para si o cargo de primeiro-ministro a fim de continuar tendo a palavra final sobre as decisões de governo. A um só tempo, o anacrônico czar apequenou o papel do presidente Medvedev e turbinou seu poder como primeiro-ministro com uma série de mudanças na legislação que, em geral, foram aprovadas por ampla maioria por um Parlamento subserviente a seus interesses.
Até que no ano passado o presidente russo cansou das manobras mais sutis – ou menos explícitas – e decidiu mudar de vez a Constituição de modo a eliminar os obstáculos à sua permanência no poder pelo tempo que desejar.
No dia 5 de abril, Putin sancionou a mudança constitucional que permite que ele concorra a mais dois mandatos presidenciais, o que pode fazer com que ele fique no poder até 2036, superando os 29 anos em que Josef Stalin comandou a União Soviética.
Após o fim do mandato de Medvedev, em 2012, Putin foi eleito novamente e ampliou o mandato presidencial de 4 para 6 anos. Em 2018, foi reeleito em uma eleição marcada por suspeitas de fraude. Até os pinheiros da Sibéria já sabiam que Putin haveria de tentar uma nova manobra de se aferrar ao poder após o fim do atual mandato, em 2024. O meio encontrado foi a reforma da Constituição.
Um suspeitíssimo plebiscito sobre a reforma constitucional foi pensado para dar verniz de legitimidade ao voraz apetite de Putin por poder. Aprovada por 78% dos russos, a reforma da Constituição permitiu que fosse zerada a contagem dos mandatos anteriores de Putin, o que abriu caminho para suas novas pretensões eleitorais. Portanto, Putin poderá concorrer a um novo mandato em 2024 e novamente em 2030, quando terá 83 anos.
“Que sigam adiante com a lei que concede vida eterna ao presidente”, ironizou Yevgeni Roizman, um dos líderes da oposição ao governo. Alexei Navalni, maior expoente da oposição a Putin, preso desde janeiro após ter se recuperado de tentativa de assassinato por envenenamento, já havia dito que o plebiscito de 2020 foi “uma grande mentira”.
É disso que se trata. Putin não se contenta em exercer um mandato presidencial, dar sua cota de contribuição ao desenvolvimento social, político e econômico do país e tentar a reeleição, caso seus governados façam boa avaliação de seus feitos. Ceder espaço a seus sucessores, como em qualquer país democrático, não faz parte do seu horizonte pessoal e político.
Putin parece, de fato, almejar a vida eterna, ao menos o modelo de vida que faz parte do imaginário de líderes autocráticos como ele, uma vida que não concebe o exercício do poder por outros que não o “ungido”, o “salvador”.
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