O jornal O Globo, em sua edição online de 18 de março de 2019, noticiou o jantar de Bolsonaro e de membros do governo brasileiro com reacionários em Washington. Na ocasião, o presidente recém-empossado afirmou, segundo o jornalista Ricardo Mendonça, que o sentido do seu governo não era o de “construir coisas para o povo brasileiro, mas desconstruir”. A frase restou esquecida no passado, talvez como mais uma ação voltada para animar a claque de seguidores nas redes sociais do que expressão de um projeto. Hoje, não é possível desconsiderá-la.
A sociedade do vale tudo deste século XXI, na qual os indivíduos não contam sequer com uma mísera campanha de orientação sanitária da parte do governo federal, remete à Belíndia do economista Edmar Bacha (1974) e está cada vez mais contrastando a prosperidade dos poucos ricos com o desamparo e a pobreza da multidão. Vítimas da desconstrução bolsonarista, os “de baixo” foram tratados como detalhe na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, na qual um ministro fala em aproveitar a pandemia para “passar a boiada” e outro defende o uso de recursos públicos “para salvar grandes companhias”. Risadas, deboche, desfaçatez.
É possível inferir, sem temor ao exagero, que o projeto de desconstrução aludido em Washington era o do país que, graças à redemocratização, ensaiava o combate pela quebra dos monopólios sociais. Em que pese os acidentes e recuos, o modelo de capitalismo plutocrático e excludente imposto pelo regime militar de 1964 parecia ficar para trás. E isso mobilizou aquilo que o economista norte-americano Thorstein Veblen (1857-1929) qualificou como interesses investidos na resistência à mudança, sobretudo de uma classe média formada sob condições de capitalismo tardio, que pode se beneficiar da mão de obra barata dos humildes para consolidar o seu espaço na estrutura social (Mello e Novais, 1998). Aí a origem do comportamento manifestado por muitos membros do grupo, identificados com o capitão apologista da tortura, da violência, do racismo e de outras boçalidades. Vale lembrar as queixas de certo ministro em relação à ascensão social das empregadas domésticas e dos filhos do porteiros.
No mundo da quarta revolução industrial, sob as formas financeiras de acumulação capitalista, a deterioração das condições sociais de reprodução se impôs. O trabalho assalariado deixou de ser o principal instrumento de integração social por conta dos progressos tecnológicos. E isso levou à diminuição da proteção social, à flexibilização da mão-de-obra, ao empobrecimento da classe média (Généreux, 1998). No Brasil, o fenômeno assumiu dramaticidade maior, pois lançou sobre a desgraça herdada desafios novos, sem o auxílio de uma cultura democrática sólida para organizar o debate em busca de soluções. O resultado foi a explosão do irracionalismo e a política transformada em guerra.
Em certo sentido, Bolsonaro é o demagogo que canalizou o ressentimento da classe média e serviu ao interesse dos plutocratas. Chegou ao poder como reação ao processo de redemocratização política e ao próprio espírito da Carta Constitucional de 1988. Fruto de um tempo em que a democracia sofre abalos no mundo, é também expressão das contradições do Brasil. Seu êxito não se deve apenas à máquina de propaganda, mas ao sentimento de frustração das camadas médias e da juventude que o transformaram em mito, dando vazão à violência contra o outro, tornado inimigo, adversário a ser eliminado e, no limite, morto.
Wilhem Reich, no célebre tratado “Psicologia de massas do fascismo”, cuja primeira edição é de 1933, argumenta que o que importa para analisar o êxito de Hitler é compreender os “motivos que tornaram as massas receptivas ao engodo”. De fato, entre nós, igualmente, esse parece ser o desafio. No campo da organização da cultura os democratas foram derrotados por um discurso que explorou a questão da moralidade sexual e material nos chamados temas comportamentais. Não à toa, autoproclamados pastores, coachs de carreira, e “empreendedores” assumiram o protagonismo que numa sociedade política deve ser reservado aos cidadãos, aos partidos e aos políticos. O discurso administrativo ou managerial (Chanlat, 1999) reduziu as dimensões do humano e serviu como uma luva ao esvaziamento da política democrática. Os saberes clássicos e humanísticos foram acusados de inutilidade e seus praticantes de ideólogos e depravados. O fetiche da prosperidade ao custo do esforço individual preencheu a mentalidade de recalcados e ressentidos. O debate sobre o nosso destino comum foi ofuscado pela recusa em partilhar a sociedade com os demais, com os rebentos da democratização social. Na verdade, o fim da sociedade de afluência e a percepção da possibilidade de exclusão derivada do desemprego estrutural libertou impulsos antissociais que beiram a psicopatia nas massas.
O mal-estar de nosso tempo não será superado pela vitória eleitoral sobre o que aí está. A organização da cultura é o caminho para vencer o individualismo obsessivo e o culto da morte que desfibram a sociedade brasileira. Aos intelectuais é reservada a tarefa de recuperar e reorganizar o debate público, para além do nível de insultos e arrogância que inundam as redes sociais. É preciso educar a população e construir a agenda democrática capaz de delinear um futuro de esperanças. É fundamental vencer a tirania do “mercado” e recuperar a centralidade da política como produtora de consensos. A hora não é dos resignados, mas dos perseverantes e construtores.
Referências
BACHA, Edmar L. “O Rei da Belíndia: uma fábula para tecnocratas”, Bacha Collection. Rio de Janeiro: Iepe/ Casa das Garças, 1974, pp. 57-61.
CHANLAT, Jean-François. Ciências Sociais e Management. São Paulo: Editora Atlas, 1999.
GÉNÉREAUX, Jacques. O horror político: o horror não é econômico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
NOVAIS, Fernando Antonio; MELLO, João Manuel Cardoso de. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: História da vida privada no Brasil : contrastes da intimidade contemporânea[S.l: s.n.], 1998.
REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do fascismo. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
VEBLEN, Torsthein. Citado por Richard Schaefer. Sociologia. São Paulo: McGraw-Hill, 2006.
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