sábado, 22 de maio de 2021

CHILE ASSOMBRA O MUNDO

Alberto Aggio, Horizontes Democráticos

O Chile assombrou o mundo nos últimos dias por conta do processo e dos resultados eleitorais para representantes da Convenção Constitucional bem como dos pleitos simultâneos de vereadores, prefeitos e governadores. Estes últimos, pela primeira vez na História do país, superando a moldura do Estado unitário vigente desde a Independência. Pela primeira vez na história do país uma nova Constituição será elaborada por uma Assembleia Constituinte eleita para essa finalidade.

O Chile assombrou a todos, mas, ao que se pode deparar, não ambiciona ser um espectro ameaçador à moda antiga, quando se tinha o comunismo global como alvo. Por outro lado, já vai longe o tempo em que se acreditava que o Chile pudesse ser tomado como um “caso modelar”, desprovido de contradições, ao protagonizar diversas inovações na sua história política: foi o primeiro pais a eleger um presidente apoiado pela Frente Popular, no final dos anos 30; o primeiro a eleger um presidente democrata-cristão no continente e, logo em seguida, um socialista; foi também o show case do neoliberalismo mundial quando a ditadura Pinochet o adotou para refundar a sociedade depois do golpe de 1973; e, por fim, o exemplo de “transição exitosa” nas duas décadas de governos da Concertación, uma coalisão de centro-esquerda que governou o país na passagem para o século XXI e manteve os pilares do neoliberalismo anteriormente imposto. Seria apressado e ilusório, depois dessas eleições, afirmar que o Chile poderia ser visto como o “modelo” de ultrapassagem do neoliberalismo e do Estado que o sustenta. Precipitado também seria equipará-lo a situações como a colombiana, que juntas seriam a expressão de uma “revolução molecular dissipada” em curso desde o início do século XXI[1].

Há, certamente, no processo chileno o coroamento de lutas sociais e políticas que vêm de anos. No caso dos indígenas, de séculos atrás. A Convenção Constituinte reservou 17 lugares aos povos originários, embora a participação eleitoral deles tenha deixado a desejar. Mas, o assombro maior desse processo foi a definição da paridade de representação entre homens e mulheres, fato inédito não apenas no Chile, mas em todo o mundo.

Olhando quadro dos resultados eleitorais, há derrotas claras, vitórias expressivas e diferenciações notáveis. A convocação eleitoral foi resultado das massivas manifestações de outubro de 2019 e, em seguida, de acordos políticos que resultaram na realização de um Plebiscito, em outubro de 2020, que aprovou a Convenção Constituinte, autônoma e paritária, por quase 80% dos votos, numa votação histórica.

Nas eleições de 15 e 16 de maio esperava-se o mesmo comparecimento nas urnas, mas isso não ocorreu: registrou-se a presença de 41% do eleitorado inscrito para votar. Mesmo assim, aqueles que votaram contra o Plebiscito foram novamente castigados pelo eleitorado: a direita chilena (atualmente no poder, com Sebastian Piñera) não ultrapassou 22% dos votos, obtendo apenas 37 postos dos 155 da Convenção Constituinte. Esse resultado lhe impede o poder de veto a eventuais avanços contrários a seus interesses e projetos.  

No âmbito da centro-esquerda, ou seja, dos partidos oriundos da Concertación, o Democrata-Cristão (DC) foi o que mais perdeu, juntamente com o Partido pela Democracia (PPD); o Partido Socialista (PS) saiu-se melhor e se manteve como o partido mais votado. Junto com partidos menores, as forças de centro-esquerda conquistaram 25 postos. Melhor desemprenho tiveram a Frente Ampla (FA) e o Partido Comunistas (PC), que junto a independentes que se candidataram em suas listas eleitorais conquistaram 28 postos. A grande surpresa da eleição, contudo, ficou por conta dos Independentes que conquistaram 48 postos.

Que protagonismo terão as forças políticas vitoriosas, identificadas como “nova esquerda” ou “esquerda alternativa” (FA+PC+Independentes) é difícil saber. O fato é que o quadro político foi revolvido, embora os derrotados para a Constituinte tenham, em parte, conseguido algum êxito nas votações municipais e regionais, ainda que para essas últimas se deve esperar, em alguns casos, o resultado de 2º turno.

A Constituinte tem nove meses, prorrogáveis por mais três, para elaborar o novo texto constitucional. Em seguida, haverá novo Plebiscito para sua aprovação ou rejeição. A vertigem político-eleitoral que afeta o país não cessará até novembro quando se elegerá o novo presidente da República e um novo Congresso. O que significa dizer que as negociações em torno das candidaturas presidenciais, a serem definidas em eventuais primárias, bem como as alianças políticas para o Parlamento estarão em curso ao mesmo tempo em que as decisões de fundo estarão sendo tomadas no âmbito da Convenção Constituinte.

Impossível não reconhecer que, depois das eleições, o Chile é outro. O avanço da esquerda é claro, assim como o recuo da direita. O enfraquecimento da centro-esquerda é seguramente um risco para todo o processo. O baluartismo da “esquerda alternativa” e a sombra de Allende pode ser uma volta perigosa ao passado.

Será uma obra de arte da política produzir consensos para a construção de um novo ordenamento constitucional democrático, social e ambientalmente progressista num contexto de vigorosos embates indentitários, tensas disputas ideológicas e polarizações políticas que podem fugir ao controle. Não é pequeno o desafio de transformar um momento exaltado e agônico da democracia, que fez emergir o ineditismo da Constituinte, em instituições legitimadas por toda a coletividade.

[1] SAFATLE, Vladimir. “Uma revolução molecular assombra a América Latina”. In El País, 19.05.2021; https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html .

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