Cairemos na escuridão permanente ou estamos chegando ao fim do túnel?
Para o jornal inglês The Guardian, a manifestação de motos comandada por Bolsonaro foi obscena. Para quem observa o cenário nacional, ele foi também um marco que vai definir expectativas para os próximos meses.
Com Bolsonaro, no palanque da manifestação, estava um general da ativa, Eduardo Pazuello. A reação do Exército a essa violação de suas regras ainda é uma incógnita. O Ministério da Defesa ia se pronunciar, mas foi proibido de fazê-lo por Bolsonaro. Tanto Bolsonaro como Pazuello são perfeitamente conscientes da provocação que lançaram.
Bolsonaro costuma se referir ao Exército como “o meu Exército”. Todos sabemos que o Exército é uma instituição que pertence ao País. Bolsonaro quer demonstrar que ele manda e pode até romper com o regulamento militar.
Se o Exército responder como se espera que responda, Bolsonaro terá de aceitar a punição de Pazuello e reconhecer mais uma vez que não consegue impor sua vontade pessoal. Se o Exército não responder, Bolsonaro sentirá que deu mais um passo no controle do poder. O que seus aliados nas ruas pedem, um avanço sobre instituições democráticas, seria mais viável nesse cenário.
Não só nos próximos meses, como na própria eleição de 2022, Bolsonaro vai se sentir à vontade para contestar o resultado das urnas e impor sua vitória, com movimentos parecidos com o ataque ao Capitólio, nos EUA. Não é um cenário fácil. Uma ruptura com a democracia nesse momento radicalizaria o isolamento internacional do Brasil.
As tentativas de Bolsonaro de ampliar seu apoio resultaram numa viagem ao Equador para a posse de Guillermo Lasso. Mas ela foi apenas uma revelação da dramaticidade desse isolamento, não só pela relativa importância do Equador, mas também pelo fato de que Lasso pode ser um conservador do mesmo estilo de Piñera, no Chile, isto é, mantendo certa distância da extrema direita. Se o Exército brasileiro aceitar essa aventura, vai entrar em choque com a própria população e o Estado será forçado a cometer barbaridades para se impor.
A ida de Pazuello e um grupo de militares para o Ministério já foi de uma grande irresponsabilidade histórica. Pazuello não é médico, desconhece o SUS, ignora o que se sabe sobre o vírus e nem sequer conhece o medicamento que foi levado a prescrever, a cloroquina. O resultado é conhecido de todos e não pode ser apagado pelas mentiras contadas na CPI.
O que leva militares a ocupar postos para os quais não estão preparados? A mística de que basta ser militar para resolver os problemas?
Na verdade, ao levar quase 3 mil militares para o governo, Bolsonaro exerce sobre eles a mesma atração que fascina os partidos fisiológicos. Os fisiológicos ocupam os cargos com claros interesses materiais. Mas os militares também estão sendo beneficiados, ampliando com altos salários os seus soldos. Recentemente o governo baixou portaria acabando com o teto salarial para um restrito grupo, entre eles os generais do Planalto.
Essa convergência entre militares e Bolsonaro se dá num momento de pandemia. A posição do governo é negacionista. Pazuello assumiu o ministério com esse espírito, a disposição de dificultar a compra das vacinas, porque, na visão negacionista, um remédio milagroso pesa mais do que investir em imunização. Em torno do meio do ano, o Brasil já terá perdido meio milhão de pessoas para a pandemia, segundo previsões da Universidade de Washington.
Não só a opinião pública nacional, mas o mundo inteiro sabe que existe uma condução negacionista e ela tem peso no número de mortes. Associar-se a essa política nefasta num contexto de ruptura democrática é um salto no escuro com consequências muito mais perenes do que o próprio regime ditatorial de 1964.
Não posso imaginar quantas gerações seriam necessárias para reatar os laços e curar as feridas. Já temos hoje 450 mil mortos, tratados com desprezo, sem nenhuma empatia ou solidariedade oficial.
Finalmente, é necessário perguntar: o que leva alguns militares a acharem que isso vá dar certo, que essa experiência tenha alguma viabilidade histórica?
O melhor caminho para os militares já foi trilhado pelos generais Santos Cruz e Rêgo Barros: retirada com dignidade e a tentativa permanente de dissociar o Exército, instrumento de Estado, de um governo/ideologia envenenado por concepções anticientíficas,
Não é possível encarar o Brasil apenas a partir das vantagens materiais que o governo proporciona. Há muitos políticos que fazem isso. Mas entrar na política para repetir velhos erros dos próprios políticos, mentir descaradamente, afrontar a própria instituição, não é isso que se esperava de quadros das Forças Armadas.
Alguns generais cooptados pelo governo Bolsonaro interpretaram a política como uma orgia na qual se podem mover sem nenhuma responsabilidade. São os neocínicos, uma categoria que merece análise especial, pois chegou envolvida numa retórica de novidade e decaiu sem chegar a florescer.
O domingo de louvor ao vírus é um marco e, ao mesmo tempo, um enigma: cairemos na escuridão permanente ou estamos chegando ao fim do túnel?
Artigo publicado no jornal Estadão em 28/05/2021
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