Uma leitura atenta do noticiário nacional, ao longo das últimas semanas, identifica sintomas eloquentes de uma sociedade que, envolta em conflitos internos, mergulhou voluntariamente na estagnação há quatro décadas. Somente as eleições de 2022 oferecem alguma esperança de correção de rumo, mas o quadro atual não permite alimentar grandes esperanças.
A reforma tributária, o mais importante item da pauta econômica em debate no momento, encontra-se num atoleiro. O relatório da Comissão Mista da Reforma Tributária divulgado pelo relator, deputado Agnaldo Ribeiro, mostra que o Congresso vem amadurecendo a compreensão do complexo tema. Até questões que costumam suscitar resistências de pessoas tão bem intencionadas quanto mal informadas, como a necessidade de haver uma alíquota única do IVA para todos os bens e serviços comercializados num mesmo município, parecem ter sido compreendidas por muitos legisladores.
Mas a aprovação de uma reforma tecnicamente consistente, sem graves concessões que comprometam sua eficácia, exigiria uma liderança e habilidade políticas inexistentes num governo capitaneado por Bolsonaro. Como pior do que manter temporariamente a desordem tributária atual seria aprovar definitivamente uma reforma ruim, tudo indica que o tema ficará para um futuro governo.
A sempre adiada privatização da Eletrobras segue no mesmo rumo. A MP original enviada pelo governo sofreu profundas alterações no Congresso que reduzem a atratividade da empresa para potenciais compradores privados, assim como criam incertezas que afetam outras empresas do setor elétrico.
Na nova versão da MP, a Eletrobras passaria ao setor privado, mas em seu lugar surgiria outra estatal gigantesca – a Eletronuclear – que herdaria as usinas nucleares e também Itaipu, além de ser obrigada a construir termelétricas movidas a gás em locais onde sequer há gasodutos. Dessa forma, a rentável Itaipu geraria os recursos para sustentar termelétricas economicamente inviáveis, além de outros penduricalhos, o que constituiria um subsídio cruzado injustificável.
Da mesma forma que no caso da reforma tributária, pior do que preservar por mais algum tempo a Eletrobras na mão do Estado seria aprovar uma privatização mal feita, de modo que tudo indica que a privatização ficará para um futuro governo.
Na Petrobras, a intervenção de Bolsonaro destinada a mudar a política de fixação de preços de combustíveis, baseada na paridade com os preços internacionais, apenas no intuito de agradar seus eleitores caminhoneiros, até agora não resultou em mudança naquela política. Isto porque o novo presidente, ao assumir o cargo, descobriu que não há outra política de preços economicamente viável. Mas já se pode prever que, como compensação ao capitão, a atual direção da empresa adiará as privatizações de refinarias, embora já haja uma decisão do Cade – bem como um Termo de Compromisso de Cessação de Prática assinado pela Petrobras – que prevê as privatizações.
Tampouco outras privatizações deverão avançar. Após o Ministério da Economia divulgar um detalhado inventário de participações acionárias da União que surpreendeu pela sua amplitude, as poucas privatizações ocorridas limitaram-se a vendas de subsidiárias de empresas estatais, bem como a licitações que transferiram ao setor privado a exploração de ativos – como aeroportos – de estatais mantidas. O estatista Bolsonaro repete a estratégia do PT que fazia concessões aos mercados de capitais, promovendo a contragosto algumas privatizações perfunctórias, mas limitava-as aos casos em que podia transferir ao setor privado apenas a exploração do serviço preservando a propriedade estatal do bem de capital.
No momento em que o Congresso discute a espinhosa PEC da reforma administrativa, cujo objetivo é racionalizar os elevados gastos com pessoal, o mesmo governo que enviou a PEC divulga um decreto oficializando o descumprimento do teto constitucional de remuneração de servidores. O próprio presidente da República é beneficiário direto do decreto. E a reforma proposta só valeria para novos funcionários, atrasando em décadas um ajuste necessário e o corte de privilégios.
As disfunções e a paralisia decisória ilustradas acima são o resultado de um governo sem maioria parlamentar chefiado por um político tosco sem convicções claras, além de um conservadorismo algo difuso mas extremamente reacionário. Após fomentar os mais diversos conflitos e tratar a pandemia com indescritível irresponsabilidade, Bolsonaro precisou buscar apoio no velho Centrão – que negou e atacou inúmeras vezes antes de abraçá-lo -, um bloco composto de 1/3 dos deputados para conseguir escapar do impeachment. Mas seus novos parceiros agora lhe impõem o preço do apoio sob forma de exigências cada vez mais caras, o que perpetua a paralisia.
Com a aproximação do calendário eleitoral, a sociedade se vê diante de um quadro desanimador. A principal candidatura de oposição, até o momento, é a de um ex-presidente envolvido em inúmeros escândalos de corrupção que governou durante um grande boom de commodities, o que lhe permitiu entrar para o imaginário popular como grande administrador e eleger uma neófita na política. As políticas equivocadas e distorcivas do segundo governo Lula foram aceleradas e ampliadas, por Dilma Rousseff. A Nova Matriz Econômica mergulhou o país numa profunda crise econômica que abriu espaço para a eleição de um primitivo anti-democrata, que não tem qualquer projeto significativo hoje além de sua sobrevivência política a qualquer preço.
Lula elegeu Dilma que, por sua vez, elegeu Bolsonaro. É preciso evitar que Bolsonaro eleja Lula. Não se pode escolher um projeto ruim, que provavelmente manterá o país em conflito e estagnado, substituindo-o por outro também ruim que deu errado no passado.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento**Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV
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