domingo, 23 de maio de 2021

JACAREZINHO: UM CRIME DO BRASIL

Cristovam Buarque, Blog do Noblat, METRÓPOLES

Jacarezinho é um ponto geográfico e um momento histórico. Fica no Rio de Janeiro e pertence ao fluxo da história do Brasil. Os principais culpados se sua tragédia são aqueles que puxaram os gatilhos de suas armas, de ambos os lados da disputa. Matando um policial e outras 27 pessoas. Mas Jacarezinho não foi um fenômeno isolado na geografia ou na história. Ela tem alguns séculos de construção e muitos responsáveis. Está sendo preparada por líderes nacionais envolvidos diretamente e por milhões de brasileiros coniventes. Jacarezinho foi mais um passo de brutalidade em relação ao passado e ao que ainda ocorrerá no futuro. O Brasil tem milhares de Jacarezinhos explodindo ao longo de anos, executados por uma lógica que lhe dá sustentação, explica e constrói.

Cada vítima de bala perdida é um Jacarezinho, cada chacina de jovens é um Jacarezinho, o assassinato de um tio e um sobrinho entregues à militância do bairro pelos seguranças de um supermercado é um Jacarezinho. O Brasil é um Jacarezinho.

Os policiais e seus comandantes que ordenaram ou executaram a operação devem ser julgados pela maldade e incompetência. Os traficantes que usam a população local, inclusive crianças, e que nesse dia dispararam contra os policiais, também devem ser julgados se sobreviveram; os mortos também devem ser julgados, embora a sociedade ficou sem chance se puni-los. Mas estes não são os únicos responsáveis. Em Nuremberg, foram julgados e condenados à morte ou prisão alguns dos dirigentes que cometeram crimes nazistas contra a humanidade, mas por décadas o povo alemão foi também responsabilizado. O nazismo foi um crime da Alemanha, Jacarezinho foi um crime do Brasil. porque o Brasil construiu Jacarezinho. Produto das políticas de desenvolvimento ao longo da República. Jacarezinho é só tamanho do Brasil e de nossa história.

Foi o Brasil que executou uma modernidade apressada e concentradora dos benefícios, que provocou a migração em massa, transformou cidades em “monstrópoles”, criando os Jacarezinhos que existem em cada cidade brasileira. Foi o Brasil que concentrou renda para viabilizar a venda de automóveis e fez viadutos no lugar de escolas, estradas no lugar de rede de esgoto, o crescimento econômico no lugar do bem-estar. Foi o Brasil que fechou os olhos às drogas e ao tráfico e depois armou as polícias com direito de matar, mesmo a hipocrisia da proibição de pena de morte.

Foi o Brasil que, ao negar escola de qualidade aos pobres, quase todos negros, permitiu que se mantivesse ativa a última trincheira do escravismo e vivo o racismo estrutural, permitindo que os policiais, inclusive aqueles que são afrodescendentes, vejam os negros como suspeitos, os suspeitos como condenados à pena de morte, se ficarem na frente dos rifles, especialmente se armados, o que caracteriza legítima defesa.

O Brasil construiu o Jacarezinho, manteve o racismo, armou os policiais e os traficantes, não lhes deu a formação necessária ética e técnica, fechou os olhos antes e continua fechando.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

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