O presidente Jair Bolsonaro já não é franco favorito à reeleição em 2022. Ele corre o risco de nem chegar ao segundo turno pela maneira desastrada e irresponsável — para dizer o mínimo — como seu governo lidou com a pandemia. Isso se não houver impeachment antes.
A disputa está aberta e a única certeza em relação a 2022 é a de que o eleitor evangélico será protagonista na escolha do próximo presidente — como já foi em 2018 para eleger um candidato azarão, que não era o favorito do mercado nem tinha o apoio dos principais meios de comunicação do país.
Prestígio abalado
Evangélicos representam ainda hoje os principais apoiadores do presidente. Eles continuam entre os grupos mais resistentes ao impeachment (59% contra, segundo o Datafolha), mas a tendência é de queda.
Quase 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro em 2018 (votos válidos, Datafolha), mas os dados divulgados em março de 2021 pelo mesmo instituto registram que apenas 37% dos evangélicos avaliam o governo federal como sendo bom ou ótimo. Ou seja, dois a cada três evangélicos está insatisfeito e portanto aberto a apoiar outra candidatura.
Semear a discórdia
O caminho para o presidente atual reconquistar o coração dos cristãos conservadores — é bom lembrar que metade dos católicos também votaram na chapa Bolsonaro-Mourão em 2018 — é fazer o debate das pautas morais ser mais importante do que os desafios da justiça social.
As outras narrativas do presidente se enfraqueceram com a absolvição de Lula e a aproximação crescente entre o Governo Federal e o Centrão. O que resta a Bolsonaro é defender a “família tradicional” e fortalecer a ideia de que a sociedade persegue os evangélicos — uma narrativa com ecos bíblicos.
Quanto mais evangélicos forem atacados de maneira preconceituosa e desinformada, mais os cristãos moderados se virão constrangidos em suas comunidades a concordar com os líderes defensores do presidente. Por outro lado, ter um relacionamento respeitoso com os evangélicos é um valor em si para qualquer democrata e democracia.
Vacina contra o preconceito
Esse cenário de fomento da “Guerra Santa” entre “cristãos” e “hereges” está se tornando menos provável. Entre os líderes de esquerda mais conhecidos, Marina Silva e Benedita da Silva há muitos anos aproximam movimentos sociais, cristianismo evangélicos e ativismo político. E mais recentemente Lula, Marcelo Freixo e Guilherme Boulos vêm falando publicamente sobre como o cristianismo transforma positivamente a vida dos brasileiros mais vulneráveis.
Mas o eleitor progressista também tem uma lição de casa a fazer para desconstruir as narrativas que levam à polarização. Seguem três recomendações para fortalecer a posição dos evangélicos moderados em suas congregações:
1. Não xingue uma pessoa de “evangélico”. O ataque à religião ofenderá também pessoas que não são mercadores da fé, nem extremistas, e que enxergam sua fé como algo importante nas vidas delas. São 500 anos de história de uma tradição marcada pela pluralidade, pela defesa da liberdade religiosa e que, no Brasil, sendo um fenômeno do mundo popular, merece mais atenção e disposição para o diálogo.
2. Não confunda líderes das igrejas com a população evangélica. Ao contrário do que se imagina, as igrejas são espaços onde acontece muita discussão política (no sentido amplo do termo) e é normal que as congregações debatam e enfrentem decisões arbitrárias dos pastores e líderes em suas congregações quando isso ocorre. Sobre isso, leia a entrevista da antropóloga Jacqueline Teixeira sobre a atuação das mulheres da Igreja Universal contra o voto em Bolsonaro na eleição de 2018.
3. Decida o que você entende por “crente progressista”. Se o critério é que ele ou ela defenda a legalização do aborto, da maconha e do chamado “casamento gay” — um termo vago conforme registrou este estudo realizado por pesquisadores da USP e UNESP — restarão uma fração de evangélicos de classe média e alta para se conversar. Esses temas são legítimos e devem ser debatidos. Entretanto, se o “evangélico progressista” for percebido como aquele que defende programas de combate à miséria e à desigualdade social, ao trabalho similar ao escravo, ao desmatamento, à proteção dos povos originários e à corrupção, a audiência de interlocutores será mais próxima dos 63% de evangélicos que não avaliam positivamente o governo Bolsonaro hoje.
Visões do futuro
Existe uma narrativa distópica que ecoa fortemente nos círculos progressistas, e que tem como referência a série de TV O conto da Aia, baseada na obra da escritora canadense Margareth Atwood. Essa referência é mencionada para sugerir que o Brasil pode estar caminhando para uma ditadura fundamentalista liderada por milicianos e evangélicos.
Pode ser. Mas vejo também outra narrativa que cabe no horizonte.
Entre 2014 e 17, me tornei amigo e convivi regularmente com cinco casais que estavam na Inglaterra como doutorandos ou pósdoutorandos. Quatro desses estudantes, que são de origem popular e frequentaram escolas públicas, foram evangélicos durante um período da vida. Hoje apenas um casal mantém o vínculo com sua igreja. Os outros se afastaram ou são abertamente críticos à influência evangélica na política e nos costumes.
Partindo dessas referências, e diferente da cidade fictícia de Gilead de O Conto de Aia, o futuro do Brasil pode ser também mais tolerante, com evangélicos superando a pobreza para, nos ambientes universitários, adquirir visões mais inclusivas, críticas e menos vulneráveis às narrativas apocalípticas e xiitas.
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