Confrontado com sua gestão desastrosa no Ministério da Saúde, o general Eduardo Pazuello faltou no dia 5 à CPI da Covid usando uma desculpa. Depois, conseguiu um habeas corpus para ficar calado na última quarta-feira, dia 19. Mas no dia D e na hora H do seu depoimento, ao invés de ficar mudo, usou uma nova tática: mentiu compulsivamente, como um Pinóquio da nova era. As medidas diversionistas não ofuscaram seu papel na crise.
As três estrelas do general Pazuello não foram suficientes para protegê-lo quando confrontado na Comissão Parlamentar de Inquérito. De uma forma pouco afeita à coragem que se espera do militar, o general recorreu ao STF para ficar calado nas perguntas em que poderia se incriminar. A intenção foi uma confissão antecipada de culpa. As mentiras, transformadas em nova tática, também não mudaram o curso das investigações. A atitude apenas expôs a hipocrisia do discurso bolsonarista. Sobre a tentativa de ficar mudo, o próprio presidente já defendeu em 1999 a “tortura” contra os que ficam em silêncio em CPI (no caso, o ex-presidente do Banco Central Chico Lopes). “É um imoral, um sem-vergonha. Ele tinha que ir lá e contar a verdade. Por que o medo?” Em 2016, Eduardo Bolsonaro tachou de “covarde” um depoente que usou o direito de ficar calado na CPI da Funai e do Incra: “Não tem um pingo de vergonha na cara”. Em 2015, o atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, disse: “Quem se vale do direito de ficar calado em CPI tem coisa a esconder. Só bandido usa disso”. O contraste entre essas declarações de falso moralismo e o comportamento do general bolsonarista não passou despercebido no Congresso. “Primeiro tentavam fechar o STF, depois recorrem a ele para ficar calados”, ironizou o presidente da CPI, Omar Aziz.
“Omissão cumprida”
Em seu depoimento, o general desfilou uma série de inverdades. A começar pela lorota de que não tinha defendido a cloroquina, um remédio que já havia sido descartado pela OMS, pelo FDA (a Anvisa americana) e por diversos estudos, mas virou ferramenta política do governo Bolsonaro. Pazuello disse que “não comprou nenhum comprimido”. Negou que o Ministério tivesse prescrito o fármaco, mesmo que até um aplicativo, o TrateCov, tenha sido desenvolvido para isso. Foi um evidente choque com a realidade. Afirmou que essa plataforma, que prescrevia cloroquina e outros remédios sem eficácia comprovada até para bebês, nunca foi lançado. Mas uma reportagem da TV Brasil, a emissora pública que Bolsonaro transformou em veículo de propaganda, mostrou que o TrateCov já estava em uso em janeiro, em Manaus, quando a cidade enfrentou um colapso. Confrontado, usou um subterfúgio risível: disse que o aplicativo tinha sido “hackeado”. “O hacker era tão bom que colocou na TV Brasil”, ironizou Aziz. Sobre a tragédia na capital amazonense, Pazuello afirmou que só houve falta de oxigênio por três dias, revoltando os parlamentares. Aos gritos, o senador Eduardo Braga (AM) lembrou que pessoas morreram por falta do insumo por mais de 20 dias. Não precisaria se exaltar. O País inteiro acompanhou o drama, assim como a imprensa internacional. O general disse que só foi informado da falta de oxigênio no dia 10. Mas a Advocacia-Geral da União já mostrava a escalada da crise em dezembro, com a possibilidade de colapso a partir do dia 11.
Em todas as falas, o general tentou blindar o presidente. Negou pressão de Bolsonaro sobre a compra da cloroquina e responsabilizou os órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU), pelo atraso na compra de vacinas. Uma afirmação que foi desmentida pela própria corte. Sobre ter brecado a compra da Coranavac (“um manda, o outro obedece”), negou que o presidente tenha mandado cancelar a compra do imunizante do Instituto Butantan. Foi outra declaração extravagante que insulta a memória dos brasileiros. O próprio presidente declarou em outubro passado, em vídeo que está disponível a todos nas redes: “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. O general atribuiu a meia-volta do governo ao próprio governador João Doria, por ter “politizado” a questão da vacina. É uma infâmia. Além de não assumir nenhuma responsabilidade, tentou transmitir a culpa da falta de imunizantes ao gestor que conseguiu viabilizar vacinas em tempo recorde, e mostrou desprezo com a população que dependia delas para sobreviver. “O ministro aparentemente está com deficiência de memória”, ironizou Doria. A única escorregadela, por assim dizer, foi quando Pazuello admitiu que Bolsonaro estava presente na reunião que descartou a intervenção na crise de oxigênio em Manaus.
Esse foi o tom de todas as intervenções de Pazuello, que negou o óbvio, apesar das provas à disposição dos senadores. Buscou apenas tirar a responsabilidade da crise dos seus ombros e blindar o chefe. As contradições foram constrangedoras para ele e embaraçosas para o Exército, que temia ser associado ao seu intendente três estrelas. Esse objetivo foi parcialmente alcançado. Pela intervenção do comando da corporação, senadores evitaram associar o ministro à instituição, apesar dos esforços no sentido contrário de Pazuello (citou um trecho do hino nacional, usou gravata com as cores da bandeira e soltou vários jargões castrenses). Foi um show de cinismo e omissões, com pelo menos dez alegações enganosas. “Omissão cumprida”, ironizou o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta sobre a performance do general.
A situação do ex-ministro se complica inclusive por novas suspeitas que começam a recair sobre a sua gestão. Em meio à pandemia, sua equipe atuou para desembolsar quase R$ 30 milhões para a reforma de galpões e da sede da pasta no Rio de Janeiro. Tudo sem licitação, por empresários envolvidos em fraude anterior com a Aeronáutica. Esse escândalo felizmente foi brecado a tempo pela AGU. Mas à frente dele estava um dos militares alçados ao Ministério pelo próprio Pazzuelo. Com a tensão na CPI, o ministro passou mal no primeiro depoimento (até isso ele negou) e a sessão foi retomada no dia seguinte. “Ele mentiu muito. Seu depoimento foi verdadeiramente sofrível”, resumiu Calheiros. O vice-presidente Randolfe Rodrigues pediu a quebra do seu sigilo telefônico, telemático, fiscal e bancário.
A performance do general foi semelhante ao do ex-chanceler Ernesto Araújo, na terça-feira, 18. Confrontado com os problemas diplomáticos que geraram atraso na entrega dos insumos da China para a produção de vacinas (IFAs), Araújo negou ter feito declarações contra o país. Mas a patuscada não resistiu a uma rápida checagem em seu próprio blog, que trazia desde abril do ano passado um texto intitulado “Chegou o Comunavírus”. Entre outras sandices, o ex-chanceler alertava para um “jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser humano e transformá-lo em um autômato desprovido de dimensão espiritual, facilmente controlável”. A lógica seria risível, se não fosse trágica. A ação ativa para atacar o país asiático foi notória e nefasta. Ao longo de praticamente todo o ano de 2020, Araújo tentou remover o embaixador chinês de Brasília. Encaminhou duas cartas a Pequim, em março e novembro, quando o Instituto Butantan já corria para conseguir trazer as primeiras doses da Coronavac rejeitadas por Bolsonaro. O ex-chanceler, que se gaba de ser um “pária”, foi ignorado pelo governo chinês. No fim, o próprio Araújo perdeu a cadeira e agora corre o risco de enfrentar uma acusação criminal por suas ações. O embaixador chinês, inspirado na sabedoria milenar, teve seu dia de vingança com o calvário de Araújo. Postou nas redes a foto de um cacto: “Exercite a paciência, pois as coisas boas fazem qualquer espera valer a pena”. Na fina ironia do diplomata, o purgatório do ex-chanceler é um sinal de dias melhores.
“Ex-Ernesto”
O depoimento do ex-chanceler (“ex-Ernesto”, como debochou Kátia Abreu, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado) demonstrou como todo o governo foi colocado a serviço de uma política negacionista. Da promoção de um spray nasal milagroso de Israel à busca pela cloroquina indiana, por orientação expressa de Bolsonaro, todas as ações passaram ao largo das reais necessidades do País. Araújo reconheceu que não participou da ajuda de oxigênio enviada pela Venezuela no colapso de Manaus, e não explicou porque o corpo diplomático não se mobilizou para trazer imunizantes. “Houve displicência, não má vontade”, cravou o presidente da CPI.
É difícil resignar-se diante de tamanha irresponsabilidade. Como a CPI está mostrando, Pazuello, junto com Ernesto Araújo, moveu mundos e fundos para encontrar cloroquina, mas não para buscar vacinas, o que dezenas de países já faziam. Existe uma abundância de provas para esse descalabro. O trabalho da CPI não é levantar as evidências do crime, mas sistematizá-las de forma contundente no relatório final, com as devidas tipificações. Para citar apenas alguns exemplos: as inúmeros defesas do uso de cloroquina; as ofertas de vacinas da Pfizer que foram ignoradas; as ofertas da Coronavac que foram negadas; a negligência no envio de oxigênio durante o colapso de Manaus; os sete alertas sobre faltas de medicamentos para intubação em 2020, desconsiderados. Para compor o mapa do crime, outros personagens podem ser convocados, ainda que a CPI não tenha aprovado ainda essa providência. Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação, fez ataques racistas à China. O ministro Paulo Guedes errou todas as previsões que fez sobre a pandemia. Inclusive no final de 2020, quando previu que a doença perderia força neste ano.
Acuado, o presidente voltou a mobilizar manifestantes no sábado,15 . Dobrou a aposta negacionista e chamou de “idiotas” aqueles que estão em isolamento por causa da doença. Com a tropa de choque na CPI desarticulada, restou ao clã tentar ganhar no grito. O senador Flávio Bolsonaro voltou à Comissão para tentar salvar Pazuello, quando este foi perguntado sobre o “pixulé” (propina) que teria denunciado na saída da pasta — e negou, também. Há pouco que o governo possa fazer. Para o relatório final, a CPI pode até dispensar as acareações que comprovariam as mentiras reiteradas. No caso de Pazuello, Randolfe disse que “essas medidas ocupariam toda a agenda”. É a mesma opinião de Renan. “Se fôssemos fazer uma acareação do Pazuello com as pessoas que o colocaram em situação mentirosa, faríamos mais de 12 ou 13 acareações. A CPI cuidaria somente disso. Ele chegou ao cúmulo de negar declarações públicas dele”, afirmou.
Com desempenho tão despropositado e cômico, a CPI virou o reality show preferido dos brasileiros. Mas esse festival de imposturas deve levar à punição concreta dos que causaram a maior tragédia sanitária da história. No caso do general, ele rifou qualquer compromisso com o País para servir a um projeto de poder autoritário que ignorou as instituições, negou a ciência e já custou a vida de quase meio milhão de brasileiros. Desviou o Ministério da Saúde do auxílio contra a doença para uma ação ideológica de defesa de um governo negacionista. Por enquanto, continua fazendo cara de paisagem com um nariz de pinóquio. Mas a história fará seu julgamento.
Uma dor de cabeça para o governo
Uma nova integrante do Ministério da Saúde pode virar um novo problema para Bolsonaro. A médica Luana Araújo foi indicada para a recém-criada Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19. A infectologista foi escolhida pelo próprio ministro, que deseja passar a impressão de que o governo está preocupado em escolher técnicos para a pasta. Mas o nome causou estranheza entre funcionários e também amigos. Considerada uma referência na área da infectologia e entusiasta da ciência, Luana segue uma linha de atuação bem diferente do governo. Ela já criticou o uso de cloroquina como “neocurandeirismo” e disse que a prática colocava o Brasil “na vanguarda da estupidez mundial”.
A chegada da médica será um teste para o novo ministro. A ISTOÉ apurou que a previsão é de que a médica terá de “engolir” os pedidos que lhe forem feitos, mesmo se não concordar. Caso contrário, afirmam que a tendência é que ela “peça para sair”.
O contorcionismo verbal de Pazuello na CPI não foi suficiente para ofuscar o caos na sua gestão. Um exemplo trágico é o desperdício de testes de Covid-19, que foram comprados a peso de ouro e abandonados. De 4,3 milhões de unidades de kits compradas e alocadas num depósito na cidade de Guarulhos, na Grande São Paulo, 2,3 milhões já estão vencidos e outro 1,6 milhão expira neste mês. O caso, investigado pelo MPF, foi remetido para a CPI da Covid.
É impossível o governo convencer alguém de que não sabia do problema. Em novembro de 2020, o fato foi amplamente noticiado e o governo chegou a pedir extensão de prazo de validade dos kits. Na época, conseguiu essa revalidação. Mas, seis meses depois, uma nova dose de incompetência somada a outra dose de má vontade resultou em um prejuízo que chegará a R$ 164 milhões. É muito dinheiro jogado no lixo. O médico da Sociedade Brasileira de Infectologista (SBI) José David Urbaéz diz que a “perda de testes moleculares para diagnóstico de SARS-CoV2 é mais uma irregularidade gravíssima e que causa perplexidade”. A estratégia de testagem em massa, que foi utilizada com sucesso em vários países, foi ignorada pelo governo Bolsonaro. No final, a possibilidade de incineração dos testes é a que está no horizonte mais próximo. Assim como o governo Bolsonaro, cuja imagem se carboniza a cada dia.
Colaboraram Eudes Lima e Ricardo Chapola
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