quinta-feira, 1 de julho de 2021

O PREÇO DO NEGACIONISMO

Editorial O Estado de S.Paulo

A mentira tem pernas curtas, mas corre rápido – na era digital, mais ainda. E, em tempos de pandemia, ela mata. Do mais de meio milhão de mortes por covid-19 registradas no Brasil, quantas foram causadas pela guerra do negacionismo contra a ciência?

Um estudo apresentado à CPI da Pandemia pelo Grupo Alerta – formado por entidades da sociedade civil, entre elas a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência – estimou que, das cerca de 300 mil mortes nos 12 primeiros meses da pandemia, apenas as medidas não farmacológicas (como máscaras, distanciamento social, vigilância epidemiológica e testagem) poderiam ter evitado 120 mil. Na mesma CPI o epidemiologista Pedro Hallal estimou que, tudo somado, de 500 mil mortes, 400 mil poderiam ter sido evitadas.

Como admitem os próprios pesquisadores, são números aproximados. O cálculo do Alerta, por exemplo, projeta sobre o Brasil a taxa de efetividade na redução do contágio por medidas não farmacológicas, estimada em 40% por estudos publicados em revistas científicas como a Science e a Nature. Já o cálculo de Hallal baseia-se na diferença entre o desempenho do Brasil e a média mundial. Uma comparação exata precisaria computar variantes conjunturais e estruturais complexas, que envolvem desde diferenças demográficas, ambientais, sanitárias e possivelmente étnicas entre os países, até as estimativas de subnotificação.

Mas isso não significa, como sugeriu o senador governista Eduardo Girão, que essas projeções possam ser reduzidas a mera “guerra de narrativas”. Nenhuma narrativa pode contornar o fato de que o Brasil tem 2,7% da população mundial, mas concentra 13% das mortes.

No caso da vacinação, a mensuração é razoavelmente precisa. Só o atraso na compra das vacinas da Pfizer e da Coronavac – causado exclusivamente pela negligência amplamente documentada do governo – resultou, pelos cálculos de Hallal, em 95,5 mil mortes. A estimativa é conservadora: outras pesquisas sugerem 145 mil mortes pela intempestividade da vacinação.

Muito mais difícil é estimar quantas mortes foram causadas pela campanha ostensiva de desinformação do presidente Jair Bolsonaro. É preciso doses extras de cautela. Nem todo apoiador de Bolsonaro é negacionista, e muitos antibolsonaristas são. Mas uma pesquisa publicada pela Universidade de Cambridge constatou que nas cidades onde Bolsonaro teve maioria absoluta de votos no primeiro turno, o isolamento social cai tipicamente entre 10% e 20% por semana a cada pronunciamento negacionista do presidente. O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde verificou uma aceleração das mortes nos Estados e municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018.

A “infodemia” não é apanágio do presidente. O fenômeno é difuso e se alastrou pelo mundo com tanta ferocidade quanto o vírus. Mas sob Bolsonaro o governo se transformou numa máquina de disseminação.

Em diagnóstico sobre a transparência e acesso à informação, a ONG Artigo 19 fez uma série de pedidos de informação ao governo referentes a políticas como o aplicativo Trate-COV, o “Kit Covid” (de “tratamento precoce”), o plano de imunização e a disponibilidade de seringas e cilindros de oxigênio. Dos 20 pedidos, 75% tiveram retorno insuficiente. Quanto à conformidade das informações prestadas, 85% delas foram classificadas como “infodemia”, sendo 35% como “informação desonesta” (contrárias às evidências científicas); 25% como “desinformação intencional” (informações falsas mescladas a verdadeiras para se passarem por legítimas); 20% como “apagão” (dados que deveriam ser públicos, mas foram negados); e 5% como “informação parcial”. Como conclui a pesquisa, “a não informação e a informação conflitante foram bases das declarações do governo na condução da política de saúde”.

Aos poucos os modelos estatísticos aliados a evidências epidemiológicas depurarão coeficientes mais exatos de quantas vidas foram perdidas pelo negacionismo do presidente. Desde já, é certo que não foram nem uma nem duas, mas dezenas de milhares.

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