quarta-feira, 18 de agosto de 2021

UM PAÍS DESGOVERNADO

Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S.Paulo

Falta governo. Quanto mais vocifera o presidente Bolsonaro, mais mostra ausência de rumo. O seu tão propalado projeto de voto impresso foi claramente rejeitado pela Câmara dos Deputados, apesar de sua pressão e da liberação de mais de R$ 1 bilhão alguns dias antes da votação. Escancarou mais uma vez o “toma lá dá cá”, contra o qual dizia se insurgir quando de sua eleição. A contradição é evidente, só não aparece para quem não quer ver, isto é, a bolha bolsonarista, que só olha para dentro de si. Vivem em outro mundo, alheios às agruras de uma vacinação atrasada, a “remédios” milagrosos que só doença e morte causam, ao desemprego, à miséria e carência de perspectivas.

O seu compromisso com a palavra dada desapareceu mais uma vez ao deixar o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arthur Lira, literalmente vendido. Ficou pendurado na ponta de um pincel. Tinha se comprometido a enterrar o assunto uma vez votada a questão em pauta. O que fez? Retomou a sua verborreia golpista de que sem o seu “voto” impresso, isto é, dele no sentido estrito, não haverá eleições no ano que vem, ou elas não terão validade. O ambiente de confronto é mantido porque, afinal, é o que unicamente lhe interessa, porque nada mais tem a esperar. Sem o conflito lhe faltaria o ar que respira.

Numa última cartada antes da votação, recorreu à Marinha para lhe entregar, num desfile militar, um “convite” para participar de uma operação militar na cidade de Formosa. Poderia ter sido feito por e-mail ou por um estafeta! O convite inusitado e despropositado só se entende se for para participar do processo de instabilização das instituições democráticas. A Marinha é uma instituição de Estado e não deveria ter-se prestado a uma ação ideológica, governamental. Saiu claramente de sua missão. A fumaça de seus velhos tanques apenas exibe que sua liderança não consegue ver com o seu olhar esfumaçado.

Se efeito teve, foi o de mostrar o ridículo da situação. A melhor prova foi a repercussão nas redes sociais, com memes e charges que expuseram o hilário, o derrisório. Quando uma demonstração de força é recebida com ironia e sarcasmo, é porque sua debilidade é manifesta, tanto por fraca quanto por debiloide. Um ato de força deve necessariamente produzir medo para ter resultados. Se não o faz, é porque a dita força desapareceu com sua fumaça. Foi pelos ares, embora tenha produzido poluição ambiental e política. Os parlamentares, incluídos os governistas, não se deixaram amedrontar.

Falta política. E o pior de tudo para o presidente é que nem sua base eleitoral o apoiou nesse processo. Aposta tudo nas eleições, como se o País para nada contasse. O “toma lá dá cá” tornou-se um “tomar” sem o “dar”, pois o voto supostamente comprado não foi entregue. Aliás, penso que o presidente poderia entrar com uma ação judicial do seguinte tipo: comprei um produto que não me foi entregue. A infração ficaria nitidamente configurada. O Centrão votou majoritariamente contra o voto impresso, aí contando os “contra” e os “ausentes”, que, em caso de votação de PECs, têm o mesmo significado, pois o que vale consiste em alcançar 308 votos favoráveis.

Dentre os apoiadores do presidente constam deputados do PSDB, que forneceram seu voto, sabe-se lá por que razão. Em todo caso, são gente “séria”, pois entregaram o produto. Alguns outros parlamentares seguiram suas convicções individuais, apesar de terem perdido a noção do todo.

À falta de rumo soma-se a falta de política, tendo como consequência o enfraquecimento das instituições republicanas. Como não sabe governar e sua política se caracteriza pela oposição entre amigos e inimigos, na confrontação incessante, seu alvo são os pilares da democracia, dentre eles o voto impessoal, auditável eletronicamente, infenso à ação de milicianos e fanáticos. Trata-se de deslegitimar a instituição eleitoral, prenúncio de uma ação golpista.

Felizmente, a Câmara dos Deputados soube dizer não a tal aventura, mostrando-se à altura do desafio. Por sua vez, os militares brasileiros, apesar dos descaminhos de algumas lideranças, certamente serão fiéis à Constituição e, entre a continência a um presidente incontrolável e desorientado e a lealdade à Nação, a decisão já está tomada em favor da República.

O Brasil está maduro para uma terceira via, ou como se queira chamar uma alternativa de poder que se distancie da extrema direita bolsonarista e da esquerda petista. Os partidos, por sua própria credibilidade e sobrevivência, não deveriam prestar-se seja ao atraso, seja ao retrocesso. O País merece mais do que isto. Não pode atrelar-se aos devaneios ideológicos de um lado ou de outro.

Nossa história e nossos anseios sinalizam para um futuro de outro tipo. Se temos um espaço aberto na sociedade para que um outro caminho seja trilhado, faltam ainda lideranças que saibam enfrentar esse desafio. Temos ainda tempo, mas a urgência é premente!

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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