sábado, 21 de agosto de 2021

VAMOS INVERTER ESSA CHAVE

José Renato Nalini, O Estado de S. Paulo

Adepto fervoroso das novas tecnologias, procuro acompanhar o que surge no mundo digital para acertar o passo com esta era. Acompanho o que se noticia como tendência irreversível da Quarta Revolução Industrial, na qual estamos imersos. Um dos pensadores que sigo é Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, portador de novas nessa área. Surpreendeu-me seu artigo “A brasilianização do mundo” (FSP, 19.8.21), que merece atenta reflexão.

O título é emprestado do artigo publicado na revista American Affairs pelo escritor Alex Hochuli. Em que consistiria a “brasilianização do mundo”? Longe está de sufragar o ufanismo da “cordialidade” de Sérgio Buarque de Holanda ou qualquer outro motivo de orgulho tupiniquim.

Hochuli chama de “brasilianização do mundo” a contaminação do planeta com os problemas estruturais que aprofundam, de forma irreconciliável, o fosso entre ricos e pobres. É recorrente a constatação de que a pandemia acelerou o processo de concentração da riqueza. 47% do PIB brasileiro está nas mãos de 1% da população. O sistema político privilegia os abonados e sufoca ainda mais os espoliados.

Aquilo que a parte lúcida e civilizada do planeta vê acontecer no Brasil – o desmanche das estruturas tutelares da natureza, o menosprezo à educação, o sepultamento da cultura, a disseminação da mentira, baseada no obscurantismo e no negacionismo – vai se espalhando por outras plagas.

Hochuli é bom observador. Além de residir aqui, ele já escreveu “O fim do fim da História”, contraponto à afirmação de Francis Fukuyama. Nesse livro, publicado pela Zero Books, ele inicia com a citação de Mark Fisher: “a periferia é onde o futuro se revela”. Não por acaso, nossa terra é considerada “país periférico”. As coisas boas demoram a chegar.

Quanto ao verbete “brasilianização”, o autor recorda que ele surgiu no seminal romance “Geração X”, de Douglas Coupland. Seu significado: “o abismo crescente entre ricos e pobres”. Também foi utilizado por Ulrich Beck, o célebre elaborador do conceito icônico “sociedade de risco”, ao mencionar o desaparecimento dos empregos e a ascensão da informalidade.

A partir da obra clássica de Stefan Zweig, “Brasil: o país do futuro”, o pensador Eduardo Viveiros de Castro faz uma análise para afirmar que não é o desabrochar de uma nação paradigmática. A expressão serviria para a constatação de que o mundo gradualmente perderia qualidade e se tornaria um imenso “Brasil”: campeão da iniquidade, dos extremos entre a opulência mais escandalosa e a miséria mais abjeta.

“Tudo será Brasil”, não aquela Canaã dos sonhos, mas uma espécie camuflada do inferno dantesco. A pandemia escancarou o quadro da exclusão: os invisíveis, os desempregados, os semi-empregados, os informais, os sem teto, os sem saneamento básico, os sem educação, os sem saúde, os sem perspectiva.

Por isso o termo “brasilianização” foi adquirindo inúmeros outros significados, todos negativos. Para Ronaldo Lemos, “nesse contexto, a expressão seria’nosso encontro com um futuro negado, no qual a frustração torna-se constitutiva da realidade social”.

Enquanto isso, países como a China – tão hostilizada recentemente pelos neo-xenófobos – e o Vietnã parecem contraponto. Não só em virtude de um enfrentamento inteligente da peste, mas também porque os 10% piores alunos vietnamitas na avaliação Pisa correspondem aos 10% melhores alunos do Brasil.

É preciso inverter essa chave e mostrar que o Brasil tem condições de sair do charco da mediocridade em que atolou nos últimos anos, para que a sociedade civil – essa ficção que sustenta a paquidérmica, burocrática e ineficiente máquina estatal – tem condições de assumir as rédeas da Nação. Afinal, a sociedade civil é o conjunto do povo, único titular da soberania ou do que restou dela, na manifesta relativização do conceito.

Sociedade civil que exige seriedade dos representantes eleitos, servos que devem ser da população e que pode liderar a revolução do ensino, para que a infância e juventude brasileiras não sejam obrigadas a emigrar para a civilização, mas possam neste solo desenvolver suas potencialidades e atingir a plenitude possível.

Só a recuperação de uma educação de verdade, com investimento nas competências computacionais, de empreendedorismo e comportamentais é que fará inverter essa chave ignominiosa.

Afinal, o constituinte de 1988 acenou com Democracia Participativa. Onde foi que ela se escondeu?

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022

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