sábado, 21 de agosto de 2021

OS ANOS MAIS CREPUSCULARES

Weiller Diniz, OS DIVERGENTES

O capitão da caserna e os trogloditas da caverna são devotos da escuridão, das trevas, do furtivo e do obscurantismo. Têm aversão à luz, ao conhecimento, às liberdades e às conquistas iluministas. Vadiam no degrau mais abjeto da indigência humana, no crepúsculo da civilidade. Fiel a cegueira proverbial dos incapazes, de esconder as mazelas da própria corriola e apontar o dedo contra os adversários, Bolsonaro só não oculta o tacape. Brande a borduna repetidamente para revogar – com atos ilegais – os mandamentos constitucionais da publicidade, impessoalidade e da racionalidade. Quando as labaredas se aproximam e iluminam os ilícitos dele e da família, a saída é golpear a transparência e decretar a opacidade. São inúmeros os expedientes para selar uma enorme caixa-preta no Brasil e esconder os vestígios delinquentes dos seus parentes e aliados.

Tão logo assumiu, em 2019, estendeu a lona da escuridão, nublando as regras da regulamentação da Lei de Acesso à Informação. Um ato cinzento ofuscou o acesso à informação e banalizou o número de pessoas com poder decisório para chancelar o sigilo de dados públicos. O decreto 9.690/2019, assinado pelo presidente em exercício, Hamilton Mourão, e o então ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, aumentou o número de pessoas que, discricionariamente, atribuem confidencialidade aos dados antes acessados pela Lei de Acesso à Informação, embaçando a transparência da norma. A classificação, de reservado a ultrassecreto, virou uma farra da escuridão e pode ser feita por servidores com cargos comissionados DAS-6. Antes, a prerrogativa era do presidente, do vice-presidente, dos ministros e dos comandantes das Forças Armadas.

No início da pandemia os mesmos trogloditas ensaiaram passar outra boiada para eclipsar a Lei de Acesso à Informação. O ministro do STF, Alexandre de Moraes, cancelou em março de 2020 o trecho da MP 928/20 que suspendia os prazos para resposta dos pedidos da LAI. A decisão atendeu aos pedidos feitos pela OAB. A medida frustrada pretendia sombrear os direitos constitucionais à informação, à transparência e à publicidade. “A participação política dos cidadãos em uma Democracia representativa somente se fortalece em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das diversas opiniões sobre as políticas públicas adotadas pelos governantes”, sustentou o ministro Moraes então. O plenário do STF referendou a decisão na mesma semana, no dia 30 de março.

Ao reiterar o entendimento na concessão da liminar, o ministro Alexandre de Moraes ressaltou que a maior prova de que as modificações sugeridas pela medida provisória eram abusivas era o fato de que, desde o início da pandemia, não houve qualquer problema de acesso à informação, pois quase 100% das informações requeridas são prestadas a distância, por meio eletrônico. Segundo o ministro, a administração encontrou meios de manter a prestação de serviços com total transparência. Como exemplo, citou as sessões das Turmas do STF, que passaram a ser realizadas por videoconferência e transmitidas pela TV Justiça, pela Rádio Justiça e pelo YouTube.

Frustrado com o malogro das ofensivas para turvar marcos jurídicos, o governo passou a adotar os procedimentos de ocultação como norma da administração. Assim que o desqualificado e investigado Eduardo Pazuello assumiu a Pasta da Saúde, no auge da pandemia, abortou as entrevistas diárias e deixou de divulgar o balanço diário de infectados e mortes. Assim como seus preceptores da ditadura, que ocultavam corpos, a logística fardada no Ministério da Saúde passou a esconder os dados oficiais que atestavam diariamente a incompetência da gestão. O boicote estatal à transparência foi substituído por um consórcio de veículos de imprensa que passou a divulgar os dados sobre a Covid-19. Pouco tempo depois o STF também determinou que Pazuello retomasse a divulgação cotidiana das estatísticas. Ainda assim elas eram procrastinadas a fim de evitar a exibição no telejornal de maior audiência no Brasil.

Chamuscado pelas revelações da CPI do Senado, o governo ainda insistiu nos abusos acobertar verdades incômodas. O Ministério da Saúde colocou sob segredo os expedientes que tratam da aquisição de vacinas da Covaxin, investigada pela CPI por mais de 20 irregularidades, entre elas corrupção, superfaturamento, pagamentos antecipados e falsificação de documentos. Uma parte dos documentos foi entregue à comissão parlamentar, porém a pasta decidiu restringir o acesso público em resposta a um pedido feito por veículos de comunicação através da LAI. Em 6/8/2021, o Ministério da Saúde externou que o acesso aos documentos se encontrava “suspenso e restrito no momento”. Todos os documentos oficiais enviados à CPI pelo governo levavam o carimbo de sigiloso. A Comissão reclassificou boa parte deles. Esconder os papéis não disfarçou os odores repulsivos da malversação.

O contrato assinado entre o Ministério da Saúde e a empresa Precisa Medicamentos na intermediação de um negócio de R$ 1,6 bi em vacinas da Índia é um pântano escuro e malcheiroso. Francisco Maximiano, dono da Precisa, é um caloteiro manjado em Brasília por vender o que não representa. Recebeu R$ 20 milhões antecipados na gestão do ministro Ricardo Barros, hoje líder de Bolsonaro, por remédios raros que não dispunha e, portanto, nunca entregou. Mesmo réu, Max, como é conhecido nos porões sombrios da corrupção, foi pinçado para ser o atravessador de 20 milhões de vacinas da Bharat Biotech. Não entregou uma dose sequer do imunizante, o mais caro adquirido pelo governo e com sérias restrições da Anvisa. Quem pediu a vacina Covaxin, em carta ao primeiro-ministro indiano, foi Jair Bolsonaro. Quem fez a emenda na MP que escancarou a compra foi Ricardo Barros. Alertado das ilegalidades pelos irmãos Miranda (um servidor do Ministério da Saúde e um deputado federal), Bolsonaro fechou os olhos para a imoralidade. E haja pântano!

Carlos Bolsonaro também foi iluminado participando de uma reunião dentro do Palácio do Planalto negociando vacinas da Pfizer. Ninguém explica a participação do vereador na negociação dos imunizantes. Depois do escândalo, revelado pela CPI durante o depoimento do CEO da Pfizer, Carlos Murillo, o governo recorreu à velha tática de eclipsar. Impôs um sigilo secular sobre informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome de Carlos e Eduardo Bolsonaro. Em documentos enviados à CPI, a Presidência da República informou a existência dos cartões de acesso ao Planalto dos dois filhos do presidente. Além da participação de Carlos Bolsonaro, a CPI também recolheu muitas provas sobre o périplo ilícito do ministério paralelo no Palácio para formular políticas públicas de saúde – equivocadas – sem investiduras formais e responsáveis por centena de milhares de mortes.

A Secretaria-Geral da Presidência respondeu aos pedidos de informações jornalísticas impondo sigilo às consultas. Alegou, sem amparo ou razoabilidade, que as informações solicitadas diziam respeito “à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do Senhor Presidente da República, que são protegidas com restrição de acesso, nos termos do artigo 31 da Lei nº 12.527, de 2011″. O dispositivo citado é o que impõe sigilo de cem anos para acesso público às informações: “as informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”.

O fato de serem pessoas públicas – autoridades com mandato, respectivamente, de vereador e deputado federal – se sobrepõe ao fato de serem filhos do presidente. Por esse motivo, a Secretaria-Geral da Presidência estaria obrigada a repassar as informações. E não é só a recente decretação de 100 anos de confidencialidade sobre o acesso dos filhos do capitão ao Palácio do Planalto, que chama a atenção. São dezenas de outros casos explicitando o princípio do segredo, contrariando as determinações constitucionais. A regra constitucional é a transparência e o sigilo a exceção. Os retrocessos fragilizam a Lei de Acesso à Informação de 2012, uma das maiores conquistas legais da sociedade nos últimos anos que, para além da transparência, permite o controle social dos atos púbicos.

Além do século de sigilo, imposto pelo Exército brasileiro ao caso do general Eduardo Pazzuello, uma série de outras medidas no mesmo sentido têm sido adotadas. Todas elas acabam passando pela Casa Civil da Presidência da República, o mausoléu das trevas. Pazzuello não é um caso isolado. Ao contrário, exibe o expediente medular das máfias, a Omertá, o código do silêncio. O sigilo sob o processo que deveria render uma punição ao ex-ministro da Saúde que, como militar da ativa não poderia ter participado do ato político de apoio ao capitão de fancaria no Rio de Janeiro, foi definido pelo próprio comandante do Exército, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. O MS também determinou o sigilo de 10 anos sobre os documentos do segundo contrato de compra da vacina contra a Covid-19 da Pfizer. Mesmo a quantidade das doses sendo exatamente iguais à primeira compra (100 milhões), o governo federal irá pagar R$ 1 bilhão a mais.

Os ogros das catacumbas também classificaram como reservados ou secretos os telegramas diplomáticos entre Brasília e Israel sobre a vexatória viagem para conhecer o spray nasal contra a Covid-19. As informações sobre a viagem do ex-chanceler Ernesto Araújo ao país do Oriente Médio, em março de 2021, serão conhecidas apenas em 2036. São 15 anos de escuridão. Participaram da excursão os deputados Eduardo Bolsonaro, Hélio Lopes, o assessor Filipe Martins, e o ex-secretário de Comunicações, Fábio Wajngarten. Nenhum deles com formação científica ou técnica para tratar do tema. Além do vexame de serem repreendidos em Israel por desrespeitarem regras de distanciamento e uso de máscaras, o filho do capitão defendeu na missão classificar o grupo Hezbollah como organização criminosa. A vergonha pública não tem classificação.

Em janeiro de 2021, o governo negou o pedido de acesso à carteira de vacinação do capitão Bolsonaro feito por meio da Lei de Acesso à Informação. Na ocasião, segundo a própria assessoria da presidência, um decreto de sigilo de 100 anos foi feito porque os dados “dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem” do presidente. Diante da repercussão negativa, o capitão negou: “Se eu decretei, tem um decreto. Se tem um decreto, está publicado no Diário Oficial da União. Não tem, não existe no Diário Oficial”, justificou. Para o presidente, ignorando a informação passada por sua própria assessoria, a ideia da imprensa era “tumultuar” e lhe chamar de negacionista.

O jornal “O Estado de São Paulo” divulgou que desde 2019, o governo se recusava a informar com quem o presidente se reunia no Palácio da Alvorada. Pelo menos oito pedidos da Câmara dos Deputados para saber se havia acesso de lobistas foram negadas pelo Gabinete de Segurança Institucional, apesar da divulgação dos compromissos de autoridades ser prevista em lei. A pasta se escudava em pareceres da Controladoria Geral da União que afirma: “qualquer divulgação poderia representar uma ameaça ao chefe do Executivo”. Os mesmos pareceres foram usados para impedir o acesso de informações sobre o advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef. O mesmo que escondeu Fabrício Queiroz. Queiroz escondeu o escândalo das rachadinhas do atual senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente. Ambos estão denunciados por corrupção.

Outro caso emblemático nas sucessivas tentativas de fraudar a transparência é a história tenebrosa do médico bolsonarista Victor Sorrentino. Ele foi detido no Egito em maio de 2021 por fazer piadas de cunho sexual a uma vendedora no Cairo. Também sob a alegada proteção à intimidade, o Itamaraty decretou sigilo de 100 anos nos documentos relacionados às negociações que realizou para a liberação do médico pelas autoridades egípcias. Sorrentino foi solto e voltou ao Brasil em junho. O pedido de desculpas do médico e a aceitação da vítima, movido por mera dissimulação tática, não apaga as ofensas contra as mulheres e ajudou a mostrar ao mundo o padrão moral e ético do eleitor bolsonarista.

A Caixa Econômica Federal também alegou sigilo sobre cachê pago para o locutor de rodeios, Cuiabano Lima, protagonista da campanha nacional sobre o auxílio emergencial. Amigo de Bolsonaro, ele é presença constante no Palácio do Planalto. Os ministros do Supremo Tribunal Federal também decidiram derrubar o sigilo de alguns gastos do presidente da República, inclusive aqueles feitos por meio de cartão corporativo. Quando quer alardear mentiras, para esconder verdades, Bolsonaro não mede esforços. Foi denunciado na CPI por um auditor do TCU, Alexandre Figueiredo, por ter fraudado um documento para amparar as teses negacionistas durante a pandemia. A fraude sobre a suposta supernotificação de mortes, invocada por Bolsonaro, foi desmontada. Vergonha atrás de vergonha.

De índole fascista, amigo de nazistas e adorador de facínoras, Bolsonaro tenta erodir os alicerces das democracias. Como método de acobertamento da própria incompetência se insurge, alternadamente, contra a liberdade de expressão, hostiliza a imprensa, bombardeia a transparência, questiona as eleições livres, desafia o mecanismo de freios e contrapesos, afronta a independência dos poderes e detona os direitos individuais e coletivos. Intercala as metas e os métodos, mas desde o primeiro dia após a posse, ele golpeia os mais sagrados fundamentos da civilização para tentar a atrofiar a democracia. O senhor das trevas terminará seus dias numa escuridão sepulcral.

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