quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A CONTRIUIÇÃO DE CADA PRESIDENTE À ESTABILIDADE

Cristiano Romero, Valor Econômico

Daqui a nove meses, será realizada a nona eleição direta para presidente da República no Brasil, decorridos 37 anos do fim do regime militar. O pleito ocorrerá em meio à forte polarização que vem caracterizando a política nacional desde o primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) e que se acirrou com a reeleição de Dilma Rousseff em 2014 e a ascensão de Jair Bolsonaro, em 2018. É bem provável que a disputa transcorra num ambiente de grande instabilidade.

Depois de ter a ordem institucional interrompida em 1964, quando, apoiados por civis interessados em tomar atalhos para chegar ao poder, chefes militares derrubaram o presidente João Goulart num contexto de grave crise econômica, o Brasil custou a reconquistar a estabilidade política. O poder só foi devolvido aos civis 21 anos depois e, mesmo assim, por meio de eleição indireta realizada pelo Congresso.

A chapa vencedora tinha um integrante da oposição – Tancredo Neves – e um prócer da ditadura – José Sarney. Foi o jeito encontrado para acalmar militares inconformados com a perda iminente de poder. Ademais, a união da oposição com dissidentes da situação seria suficiente para derrotar Paulo Maluf, candidato do governo militar. Antes disso, tratou-se de impedir que a transição se desse por meio do voto popular – em 1984, o nome mais bem cotado para triunfar numa eleição direta era o de Ulysses Guimarães, rejeitado pelos generais.

No país onde a vida imita a arte, o destino apareceu na undécima hora para nos testar. Eleito em 15 de janeiro de 1985, Tancredo começou a sentir dores no abdômen nos dias e semanas seguintes, mas decidiu esconder o fato de todos. Seu temor era que uma possível doença não o deixasse assumir a Presidência, tornando possível um retrocesso na transição de regime. No dia 14 de março, véspera da posse, ele foi internado às pressas e submeteu-se à primeira de uma série de cirurgias, até falecer em 21 de abril. Em seu lugar, assumiu Sarney, o vice.

No ano anterior, milhões de brasileiros foram às ruas para exigir a volta do voto direto para presidente. A proposta de emenda constitucional Dante Oliveira, que a restabelecia, não passou da Câmara, disseminando sentimento amargo de frustração, tangível apenas quando o Parlamento vota contra o desejo da maioria da população. O moral só elevou-se quando Tancredo derrotou Maluf.

Depositaram-se no ex-governador de Minas Gerais todas as esperanças para o restabelecimento da democracia e a saída do país da crise econômica. Informações sobre a enfermidade de Tancredo só começaram a circular em Brasília na noite do dia 14. Sarney, político da ditadura, assumir a Presidência no lugar de Tancredo soava à maioria como conspiração, não do destino, mas de quem nos subtraiu a democracia.

O ex-governador do Maranhão tornou-se o primeiro presidente da Nova República nas piores condições. João Figueiredo, último general-presidente, recusou-se a lhe passar a faixa e deixou o Palácio do Planalto pelos fundos. Se já não bastasse o fato (antipático, por definição) de assumir o cargo do “salvador da pátria”, Sarney enfrentava risco real de não subir a rampa do palácio. No meio militar, era audível o burburinho de golpe, ameaça contida apenas pela firmeza do novo ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, que, na noite do dia 14, telefonou ao vice-presidente e lhe deu garantias para tomar posse.

Restabelecer a democracia em meio a um cenário político e econômico tão desfavorável, com inflação anual próxima de 200%, foi um feito que, olhado em perspectiva, deveria dar a Sarney reconhecimento de que pouco se ouve falar. Seu mandato foi marcado por três tentativas frustradas de estabilização de preços, por denúncias de corrupção e pela extensão do mandato para cinco anos, obtida no Congresso por meio de concessões de rádio a parlamentares.

Um dos presidentes mais criticados da história do país, Sarney teve o mérito de não flertar uma só vez com tentações autoritárias, que, em Brasília, reaparecem a cada crise política. Em sua gestão, instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte que estabeleceu, nos capítulos de direitos e garantias fundamentais da Carta Magna do país, os princípios para a construção da nação que não somos, como o fim da censura e a proibição de qualquer forma de discriminação.

Na economia, apesar do malogro no combate à hiperinflação, o governo tomou decisões importantes como a criação da Secretaria do Tesouro Nacional e o fim da conta-movimento do Banco do Brasil e das operações de fomento do Banco Central.

Fernando Collor venceu a primeira eleição direta pós-ditadura apresentando-se como o anti-Sarney, tirando proveito dos escândalos que ocuparam o noticiário desde 1985. Em setembro de 1992, perdeu o mandato, acusado justamente de corrupção (em dezembro daquele ano, o STF o inocentou). Olhando para trás, nenhum governo da redemocratização, com exceção ao de Itamar Franco (1992-1994), transcorreu sem casos ruidosos de corrupção, envolvendo não necessariamente os presidentes, mas assessores, ministros e aliados.

Também sob Collor, a estabilidade política foi colocada em xeque, mas prevaleceu a democracia. Vale registrar, por exemplo, que as investigações que, em última instância, trouxeram à luz do dia elementos constrangedores para o então presidente foram conduzidas por instituições públicas, como a Receita Federal e a Polícia Federal. Collor não impediu que ambas realizassem seu trabalho, fato que deve ser louvado como importante contribuição à democracia – é isso que se espera de governantes eleitos, mas todos sabemos que nem sempre funciona assim.

Na economia, o governo fracassou em duas tentativas de estabilizar os preços (Collor I e II), mas promoveu avanços que, adiante, contribuíram para o sucesso do Plano Real, como a adoção de um cronograma de redução unilateral de alíquotas de importação, a abertura da conta de capitais, a acumulação de reservas cambiais e a renegociação da dívida externa.

O objetivo destas reflexões, iniciadas na coluna passada (“Brasil: quem paga ‘pra’ gente ficar assim?”, 23/12/2021), é mostrar o árduo caminho que levou o país a conquistar a estabilidade política e econômica e apontar os riscos que a vêm ameaçando desde 2011. A série continuará no dia 20 de janeiro.

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