Eduardo Pannunzio - Advogado e doutor em direito pela USP
Quem se lembra? Era março de 2016 e corriam rumores de que o ex-presidente Lula (PT) poderia ser preso a qualquer momento pela Operação Lava Jato. No dia 16, a então presidente Dilma Rousseff (PT) o nomeou ministro da Casa Civil.
O ato causou forte polêmica. Muitos entenderam que ela mal disfarçava a tentativa de proteger um aliado político frente à então temida 13ª Vara Federal de Curitiba, que conduzia os processos da Lava Jato (como ministro, Lula passaria a ter foro privilegiado). Em momentos como esse, a sociedade costuma se voltar aos juristas: afinal, o ato da presidente era constitucional?
Ives Gandra da Silva Martins, jurista que conquistou amplo espaço na opinião pública, não tardou em dar sua resposta. Em artigo nesta Folha, dois dias mais tarde ("Lula ministro, para quê?" 18/3/16), reconheceu que a Constituição atribuía à presidente o poder de escolher seus ministros. No entanto, destacou que essa prerrogativa estava "sujeita a limitações rígidas, decorrentes, primordialmente, do fato de que a atuação da administração deve ser pautada por fins e interesses públicos, nunca particulares".
"Justamente por isso", prosseguiu Ives Gandra, "é que o artigo 37 da Constituição determina que as autoridades conduzam seus atos com impessoalidade e moralidade. Simpatias pessoais e/ou interesses de facções e grupos ligados ao governante não podem interferir na gestão da coisa pública".
O jurista então concluiu, de forma categórica: "Não há dúvidas de que a nomeação do ex-presidente [Lula] esbarra nas limitações referidas. Isso porque realizada com objetivo preponderante de protegê-lo ou de amenizar a sua complicada situação, na qualidade de pessoa próxima à presidente. Como tal, é completamente inválida".
Pois bem. Passaram-se seis anos, Dilma sofreu um impeachment, Lula foi preso (para depois ser solto) e o país é hoje governado por um presidente de extrema direita. Jair Bolsonaro (PL), há poucos dias, baixou decreto que concede "graça" ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), perdoando os crimes de seu aliado político.
Tal como em 2016, o ato gerou polêmica. Afinal, é constitucional? Desta vez, foi a Folha quem correu atrás do jurista, em entrevista de meia página ("Indulto é competência do presidente e ninguém pode contestar, diz Ives Gandra", 23/4). Quem lera o artigo dele seis anos atrás imaginou que o jurista cuidaria de demonstrar que, embora se trate de competência privativa do presidente (tal qual a nomeação de ministros), a graça estaria igualmente "sujeita a limitações rígidas" previstas no artigo 37 ou em outras partes da Constituição.
Não foi o que aconteceu. Para espanto do leitor, o Ives Gandra de 2022 defende que, por se inserir entre as competências privativas do presidente, "ninguém pode contestar" o ato. "É um poder absoluto que ele tem", declarou. Isso mesmo: "poder absoluto", como o dos reis e imperadores de outrora.
Juristas podem, naturalmente, mudar de opinião. Quando o fazem, porém, espera-se que reconheçam a mudança e expliquem ao distinto público as razões que a motivam. É o mínimo em contrapartida ao prestígio de que desfrutam nos debates envolvendo questões jurídicas. Quando não observam esse dever elementar, mais confundem do que esclarecem a opinião pública.
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