O mito de que o brasileiro é um “homem cordial” vem de um senso comum, desconstruído por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra seminal Raízes do Brasil. A expressão cordial é um “tipo ideal” que não indica apenas bons modos e gentileza, vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Segundo Buarque, o brasileiro precisa viver nos outros, um artificio psicológico incorporado ao nosso processo civilizatório. A cordialidade muitas vezes é mera aparência, “detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.” Mais atual impossível.
A apropriação afetiva do outro apontada por Buarque, em grande parte, é responsável pela “fulanização” da política brasileira, apesar de termos instituições seculares bastante consolidadas, alguma das quais com origem na chegada de D. João VI e sua Corte ao Brasil, como o Supremo Tribunal Federal (STF). O exercício efetivo do poder central em todo o território nacional, por exemplo, deve-se ao Judiciário, muito mais do que às Forças Armadas, cujo protagonismo político, na República, por duas vezes, se deu em duradoura contraposição ao Estado democrático de direito, na Revolução de 1930 e no golpe militar de 1964.
Não por acaso, graças à política de conciliação da segunda metade do Império, também temos um Congresso forte, embora nossos partidos políticos, contraditoriamente, sejam fracos, por causa da “fulanização” da política e da construção de acordos interpessoais de natureza fisiológica, corporativa e/ou patrimonialista. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essa “fulanização” da política e desnudaram a outra face do “homem cordial”, que agora protagoniza a radicalização política.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro exacerbam essa característica da política brasileira. Ambos têm um viés populista; constroem suas alianças a partir de relações afetivas e, ao mesmo tempo, pragmáticas. Não é outro o sentido da aliança de Bolsonaro com Valdemar Costa Neto, presidente do PL; a escolha do ex-governador Geraldo Alckmin como vice por Lula tem o mesmo significado.
No conceito de Buarque, o “homem cordial” é sinônimo de passionalismo, personalismo e irreverência, um transgressor das normas institucionais. Age mais pela emoção do que pela razão, sua cordialidade está associada ao domínio da esfera privada na vida brasileira. O Estado é sua segunda casa, povoada por familiares e amigos. Não é preciso um grande esforço retrospectivo para constatar esse fenômeno na vida política brasileira, muito menos revisitar as páginas de Raízes do Brasil, quase centenárias, e resgatar a nossa herança colonial lusitana.
Terceira via
O semideus grego da Ilíada de Homero tinha uma existência verdadeira, voltava para casa, tinha uma vida normal, até que a situação exigisse outro gesto glorioso e individual. A filósofa judia alemã Hanna Arendt associava-o ao que hoje muitos chamariam de “lugar de fala”. Sua disposição de agir e falar pode mudar o curso na história. O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer.
O “homem cordial”, na atual cena eleitoral, se apresenta como o herói semideus da Ilíada de Homero, cujos pilares são a grandiosidade e a singularidade, além da aspiração à imortalidade. Em 2018, Bolsonaro saiu do leito da morte para o Palácio do Planalto sem fazer campanha; nestas eleições, Lula deixou a cadeia e pavimentou a estrada para voltar ao poder sem deixar os ambientes fechados. Agora, outro candidato a semideus prepara sua volta à cena eleitoral: o ex-juiz Sergio Moro, personagem central da ascensão e queda da Operação Lava-Jato.
Moro se tornou uma personalidade nacional graças à Lava-Jato, na qual só se pronunciava nos autos. Mas era aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representava os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Cumpriu um papel estratégico na luta em defesa da ética na política, vetor decisivo para o resultado das eleições passadas. Contra Moro, Lula não teve a menor chance; seria preso, como foi, pelo juiz durão.
Depois das eleições, convidado por Bolsonaro para ser ministro da Justiça, Moro deixou de ser o juiz “imparcial”. Esse atributo foi posto em xeque pela revelação das mensagens que trocou com os procuradores da Lava-Jato em Curitiba. O cristal foi trincado por conversas banais nas redes sociais. Moro virou um político, sujeito a todos os ritos da luta política e do jogo democrático. Filiou-se ao Podemos, trocou-o pelo União Brasil, sem garantia de legenda. Agora ensaia uma volta à ribalta, como um herói noir, em disputa pela Presidência. Moro pode recuperar o espaço que ocupava no campo da chamada terceira via.
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