Governo Bolsonaro debocha dos brasileiros que foram torturados e mortos durante o regime militar
A revelação das gravações de sessões secretas do Superior Tribunal Militar realizadas a partir de 1974 se soma a inúmeras evidências de que a tortura praticada contra presos políticos durante a ditadura militar no Brasil era institucionalizada. Agora, o governo Bolsonaro tenta justificar e minimizar a violência de Estado naqueles anos de chumbo
A revelação de gravações de sessões secretas do Superior Tribunal Militar (STM) em que os ministros reconhecem a prática de tortura nos porões da ditadura tem assombrado o País nos últimos dias. E igualmente escandalosa é a reação das altas autoridades da República de minimizar os fatos, enaltecer torturadores, ironizar e ridicularizar torturados e tentar naturalizar um doloroso período repressivo e autoritário. Depois de o presidente Jair Bolsonaro voltar a elogiar o sanguinário coronel Carlos Brilhante Ustra, seu vice, Hamilton Mourão, terça-feira, 19, Dia do Exército, chamou o golpe militar de “Revolução Democrática de 1964”. Ele já havia defendido que as atrocidades cometidas ficassem no passado e ironizou as vítimas e os algozes do regime, dizendo que já estão no túmulo.
Enquanto isso, o presidente do STM, o general Luís Carlos Gomes Matos, mostrando que o deboche continua como marca do governo, aproveitou a primeira sessão da Corte depois da divulgação dos áudios para dizer que “notícias tendenciosas” teriam o objetivo de atingir as Forças Armadas. “Não temos resposta nenhuma para dar. Simplesmente ignoramos uma notícia tendenciosa, que nós sabemos o motivo. Aconteceu durante a Páscoa. Garanto que não estragou a Páscoa de ninguém. A minha não estragou”, disse o general.
Por trás da narrativa de banalização do autoritarismo sustentada por membros do governo e da alta cúpula militar, há um projeto de poder ditatorial que procura revisar a história repetindo uma mentira tantas vezes até que ela se torne “verdade”. Também é discurso recorrente dessas autoridades, cada vez que o assunto surge, que haveria uma tentativa de revanchismo ou de revisão da Lei da Anistia. Mas o que se pretende, por meio da abertura dos arquivos da ditadura, vai muito além da individualização da conduta dos agentes do Estado que cometeram crimes e de sua responsabilização individual. Trata-se de possibilitar que o País tenha assegurado o direito à sua história e à sua memória e que não se naturalize algo abominável. “Depois de 1964, nunca estivemos tão próximos de uma ideologia de segurança nacional”, avalia o advogado Fernando Augusto Fernandes, responsável pela batalha judicial de 25 anos que resultou na abertura dos arquivos de áudio do STM. A Lei de Segurança Nacional visava garantir a segurança nacional do Estado contra a transgressão da lei e da ordem, e foi utilizada durante e ditadura principalmente para enquadrar opositores do regime, os chamados “subversivos”.
Além do interesse histórico pelos áudios – desde a época de estudante de Direito, Fernandes tinha especial interesse na atuação de advogados que defendiam presos políticos –, há ainda um componente familiar que o impulsionou na busca pela abertura dos arquivos. Seu pai, o também advogado Fernando Tristão Fernandes, morto em setembro de 2021, aos 94 anos, foi um dos primeiros a atuar na área e defendia basicamente estudantes perseguidos pelo regime. Também foi ele próprio um preso político, durante oito longos meses, ainda no início da repressão, em 1964. Quando vê o tom jocoso com que altas autoridades da República se referem ao período da ditadura, Fernandes ressalta a importância da divulgação irrestrita do material do STM. “Vivemos uma espécie de terraplanismo em que presidente e vice tentam reescrever a história”, diz. “Isso demonstra que a luta pela memória desse período persiste, mesmo no regime democrático.” Ele se mostra especialmente contrariado diante das tentativas de negar que a tortura tenha sido usada como método. “Não era clandestino. Era institucionalizado mesmo, como método de investigação. O caso Herzog é um exemplo de que a violência era metódica: ele entrou vivo no DOI-Codi de São Paulo e lá foi torturado e assassinado em instalações do Estado”, afirma. O jornalista Vladimir Herzog foi morto aos 35 anos, em 25 de outubro de 1975. Um dia antes, havia sido procurado por agentes da repressão em seu ambiente de trabalho, a redação da TV Cultura.
Entre os áudios divulgados aparece o caso de uma jovem grávida que perdeu o bebê em uma sessão de tortura. “Alguns réus trazem aos autos acusações referentes a torturas e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no DOI-Codi”, disse o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos em sessão secreta no dia 24 de junho de 1977. O caso da tortura de Nádia é apenas um entre centenas a serem confirmados ou trazidos à tona com a recente divulgação dos áudios. Se existia alguma dúvida de que houve tortura durante a ditadura, não há mais. O material confirma que a crueldade realmente foi marca indelével dos chamados anos de chumbo no Brasil. Os áudios do STM vêm se juntar a um amplo conjunto de evidências de que, entre 1964 e 1985, em inúmeras ocasiões, o Estado brasileiro lançou mão da repressão e da violência como ferramenta para a obtenção de informações ou mesmo confissões junto a presos políticos que se opunham ao regime. Os áudios revelam mais: a cúpula do Judiciário militar tinha pleno conhecimento do que se passava.
O material é uma pequena parte das mais de 10 mil horas de gravação das sessões do STM ocorridas entre 1975 a 1985, que vêm sendo transcritas por grupos de pesquisa na UFRJ e UFF. Os registros mostram que, embora alguns dos ministros se recusassem a admitir, havia para a maioria dos membros da Corte o entendimento de que a tortura era prática corriqueira contra os custodiados pelo Estado. Há, por exemplo, relato de confissão obtida a marteladas, de preso privado de comida por oito dias seguidos, de investigado com sequelas persistentes em função das agressões. De acordo com o narrado pelo Brigadeiro Faber Cintra, na sessão de 15 de fevereiro de 1978 um deles alegou que, “três ou quatro anos” depois de sair da prisão, ainda sangrava pelo nariz. Os ministros do STM, no entanto, eximiam as Forças Armadas de qualquer responsabilidade e atribuíam a prática apenas às polícias militar e civil. “Eles apanham mesmo”, disse um dos ministros do STM, possivelmente o almirante Sampaio Ferraz, em sessão no dia 16 de junho de 1976. “Por isso, quando vejo um inquérito na polícia fico logo com um pé atrás. Como revisor, tomo muito cuidado examinando isso, porque o que se sente é que na polícia, no Dops, eles entram no pau. Ou confessam ou então apanham. Então não tem valor quase esse inquérito policial, a não ser um inquérito policial militar. Então estou de pleno acordo que é preciso acabar com isso.”
Havia também quem condenasse a tortura de forma veemente – mas para que a prática não depusesse contra o regime de exceção. A preocupação era com a imagem do Brasil no exterior caso viessem à tona os horrores praticados por agentes de Estado. “Quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui em um verdadeiro prato aos inimigos do regime e à oposição ao governo”, registrou o Almirante Julio de Sá Bierrenbach, em 19 de outubro de 1976. A preocupação dele era que a imprensa internacional publicasse “os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil, generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de selvagens”. O regime militar sempre tentou negar a repressão e a tortura, e ainda hoje alguns setores ligados à caserna, além de uma parcela da sociedade civil, insistem na narrativa que ela não aconteceu. Parece ser o caso de Mourão. Questionado sobre a possibilidade de uma investigação feita a partir dos áudios do STM, ele riu. “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”, perguntou. Mourão, aliás, em mais de uma ocasião elogiou Ustra, um dos principais símbolos da repressão. Ao passar para a reserva, em fevereiro de 2018, discursou no Salão de Honras do Comando Militar do Exército, em Brasília, e chamou o coronel de “herói”.
Em 2008, Ustra foi o primeiro oficial das Forças Armadas condenado por crimes cometidos durante a ditadura. Foi considerado culpado em uma ação declaratória por sequestro e tortura durante o regime militar numa ação movida por Maria Amélia de Almeida Teles e César Teles; pelos filhos do casal, Janaína e Édson; e por Criméia, irmã de Maria Amélia. César, Maria Amélia e Criméia, que estava grávida, foram acusados de subversão e ficaram presos no DOI-Codi, que na época era chefiado por Ustra, que tinha o codinome Tibiriçá. Janaína e o irmão Edson, à época com 5 e 4 anos, foram levados ao local como uma forma de pressão sobre os pais. O coronel frequentemente era apontado pelas vítimas como o agente que comandava pessoalmente as sessões de terror no DOI-Codi, marcadas por espancamento, choques elétricos e tortura psicológica. Em outubro de 2020, Bolsonaro recebeu no Planalto a viúva de Ustra, Maria Joseíta. Na ocasião, o presidente disse aos jornalistas presentes no local que o coronel foi “um herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer.” Antes disso, em 2016, o entâo deputado já havia homenageado publicamente o torturador no plenário da Câmara dos Deputados — e de forma asquerosa. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, disse Bolsonaro, ao votar pelo impeachment da então presidente. Dilma foi presa e brutalmente torturada durante a ditadura. Nas últimas semanas, na efeméride do golpe de 64, voltou a elogiá-lo.
A existência dos registros das sessões secretas do STM curiosamente se deve à tradição cartorial do Brasil, herança lusitana. O País conta com escreventes e tabeliões desde o período colonial, e eles sempre compuseram a elite da burocracia estatal.
Por aqui, tudo se registra, tudo se anota, tudo se grava. Ainda bem. Foi graças a isso, aliás, que se pôde contar também outra impactante história do período da ditadura: a do Cemitério de Perus, que abrigou centenas de sepultamentos clandestinos de desaparecidos políticos da década de 1970. O assentamento das mortes inicialmente foi feito apenas com os codinomes daquelas pessoas, Mas ao lado de cada codinome datilografado, algum burocrata achou por bem anotar, a mão mesmo, com caneta, os nomes verdadeiros das pessoas. São pelo menos mais dois episódios, portanto, em que a burocracia estatal, com sua forte tradição cartorial, produziu provas contra o próprio Estado dos crimes praticados durante o regime militar. Também foi essa característica de registrar e catalogar tudo que possibilitou a riqueza e a precisão das informações contidas no livro Brasil Nunca Mais, publicado em 1985. O livro resultou da análise de milhares de documentos contidos em centenas de processos do STM — e revelou a extensão da repressão política no País, com perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas.
Deboche perverso
Foi o deboche do filho 03 do presidente Jair Bolsonaro à tortura sofrida durante a ditadura militar pela jornalista Miriam Leitão que motivou o historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico a trazer à tona alguns trechos já analisados e transcritos por ele dos áudios das sessões do STM. Ele decidiu compartilhar o material com a jornalista, que o publicou em seu blog, depois que Eduardo Bolsonaro postou em uma rede social, no dia 3 de abril, a frase “Ainda com pena da cobra”.
Era uma referência à tortura sofrida por Miriam, que, grávida, foi levada completamente nua a uma sala em que havia uma cobra. O 03 tinha ficado contrariado com a afirmação de Miriam de que o presidente Bolsonaro é inimigo confesso da democracia – e resolveu ofender a jornalista lembrando o suplicio dela no cárcere. Mais uma vez os crimes praticados por agentes de Estado durante a ditadura eram minimizados – e o professor tinha em mãos outras evidências de que o regime de fato torturou mulheres grávidas.
Militante do PC do B durante a juventude, Miriam Leitão foi presa, em dezembro de 1972, e conduzida ao Quartel do Exército em Vila Velha, município da Grande Vitória, no Espírito Santo. Durante o período de detenção, levou tapas, chutes e pancadas na cabeça que resultaram em corte com sangramento – antes de ser exposta, nua, a soldados e agentes da repressão e em seguida trancada por horas numa sala escura com uma jiboia. Ela tinha apenas 19 anos. E um filho na barriga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário