Putz, pomba, pileque. As gírias antigas perderam o gume, mas o texto continua a cortar. Como tudo o que Lygia Fagundes Telles escreveu, "As meninas" é antissentimental. Lançado em 1973, sob o reinado sanguinolento de Médici, não se furtou ao contexto do chumbo.
Com cenas explícitas de sexo, consumo de drogas e sessões de tortura, é surpreendente que não tenha sido proibido. Lygia dizia que o censor não teve paciência com as queixas íntimas de suas protagonistas e que logo largou o livro, sem dar-lhe maior importância.
Comeu bola. O romance ganhou o Brasil e o mundo. Implacável, a censura era também muito burra. "O Vermelho e o Negro" foi considerado comunista. E até hoje procuram um tal de Sófocles, subversivo perigoso. Electra matar a mãe não dava, afinal.
Sorte nossa. A autora comemorou a liberação com uma garrafa de vinho, ao lado do segundo marido, Paulo Emílio Sales Gomes, então diretor da Cinemateca Brasileira, que os atuais brucutus largaram às traças e ao fogo.
O terceiro romance de Lygia acompanha a vida de três jovens universitárias, moradoras de um pensionato de freiras, na São Paulo de 1969, logo após o AI-5, quando a violência de Estado virou regra.
Num estilo ousado, as vozes se alternam e as descrições realistas se dissolvem em fluxos de consciência, às vezes sem que o leitor perceba, como o intrincado jogo de espelhos no quadro de Velásquez de mesmo nome.
Nem por isso o livro é difícil. Desce bem, como o uísque tomado numa reunião clandestina, para diminuir a tensão: "Os intelectuais estão comovidos demais para falar, só ficam sacudindo a cabeça e bebendo. A sorte é que o uísque não é nacional."
A personagem Lia participa da luta armada, com ajuda financeira da amiga Lorena, virgem e apaixonada por um homem casado, e o desdém de Ana Clara, a turva, a bela. Esta tem um noivo "rico e escamoso" e um amante traficante de drogas. Seu braço é um mapa de picadas que aponta a direção morte.
O namorado de Lia toma choques em algum porão tenebroso do DOI-CODI. Lygia descreve, em detalhes, a tortura, prática tão elogiada pelo miliciano que zurra no Planalto e festeja o golpe a cada véspera da mentira. "Maurício aperta os dentes que se quebram."
Ao lado de Max, no tapete, Ana Clara aperta o copo na mão. "Com a ponta da língua empurra o pedaço de gelo até o céu da boca." Lá fora o inferno, o ultraje. " O uísque escorre pelo pescoço", pelo peito, pede para ser lambido, "a boca no lugar da boca, tudo certo".
Quando para de beber, "volta a usar os óculos", a realidade na cara. Mas se o rio é "licoroso", ela o bebe "até chegar à cerejinha espetada num palito." Ana turva morde-a e se contrai "dolorida, sangrando licor vermelho."
A cena remete ao conto "A Ceia", de "Antes do Baile Verde" (1970), em que um casal se encontra pela última vez e ela lembra de quando quebrou "o copo na mão, aquela coisa dramática do vinho ir escorrendo misturado com o sangue…". Mesma alusão —mais sutil, talvez— que Chico e Gil fariam anos depois em "Cálice".
O tempo das cubas-libres, hi-fis e meias-de-seda tinha ficado para trás. A hora era essa, não esperava o amanhecer. Coquetéis tinham aura frívola, demandavam tempo. Vinho e uísque bastava servir. E se aquecer para a luta. Ou para esquecer que havia luta.
Linda Lygia.
SCOTCH & SODA
Ingredientes
60 ml de uísque
100 ml de club soda ou água com gás
Como fazer
Coloque o uísque num copo highball com gelo e complete com club soda. Se quiser, acrescente uma rodela de limão.
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