quarta-feira, 27 de abril de 2022

SE O STF CAPITULAR

Conrado Hübner Mendes, Folha de S.Paulo

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

Juiz morre pela boca. E o Judiciário morre pela boca do juiz. Seria bom para a democracia brasileira se ministros do STF não saíssem por aí tecendo avaliações de conjuntura aos microfones de jornalistas, em salas de conferência ou eventos privados em bancos e resorts. Antecipando juízos, louvando reformas, criticando colegas, mandando recados, fazendo previsões, passando vergonha.

Não só porque as avaliações se mostram, em geral, diletantes e autointeressadas. Mas porque não cabem no compromisso institucional que assumiram. Nem nos rituais de preservação dessa matéria-prima delicada da qual se constitui a autoridade do juiz. São falas anti-institucionais que configuram conduta judicial imprópria.

Juízes constitucionais de democracias pelo mundo praticam essa máxima universal da ética judicial. As cortes ganham. Da Alemanha aos Estados Unidos, da Índia à África do Sul. No STF, Rosa Weber e Edson Fachin dão exemplo, mas são vencidos pelos contraexemplos.

Gilmar Mendes concedeu fascinante entrevista à jornalista Daniela Pinheiro, no UOL, dias atrás. Disse que não vai ter golpe. Porque não. Explicou que os problemas do Brasil se devem à Lava Jato, chamada de "totalitária". Já Bolsonaro "beira o autoritarismo". Teria restado a ele, Gilmar, beirar o super-heroísmo que fulminou a Lava Jato quando não mais lhe servia, pariu Augusto Aras e o lava-jatismo invertido apoiado pela advocacia progressista (por autodeclaração).

Logo ele, lava-jatista raiz de primeira e segunda hora, autor do ato mais lava-jatista da história por liminar monocrática pré-feriado usufruído em Lisboa, onde coordenou conferência lava-jatista organizada por sua empresa educacional na presença de lideranças partidárias do país. O ato mais lava-jatista da história (a invalidação-relâmpago da nomeação de Lula como ministro de Estado, com base em doutrina jurídica de um caso só) nunca foi revisto pelo STF.

Luís Roberto Barroso deixou escorregar declaração desabonadora sobre militares numa conferência de universidade alemã. Disse que militares estão "orientados a atacar as eleições". Nem sequer admitiu a vocação autoritária de milicos. Foram "orientados" por um mandante, não por agência própria. O lapso bem comportado bastou para o contra-ataque. Barroso está sendo acusado de crime militar.

Logo ele, que há anos os elogia. Já afirmou que militares, apesar de nunca punidos por crimes contra a humanidade, pagaram preço alto demais pela ditadura. Num governo ocupado por mais de 6.000 militares, recusou-se a enxergá-los no "varejo da política".

Colocou militar no TSE, pois, apesar de sua fé na resiliência democrática, não quis pagar para ver. Deu a militares outra arma para provocar desconfiança nas eleições.

A reação de militares integra a coreografia ensaiada do palco bolsonarista, universo onde a "ditadura do STF" (assim como a "ditadura gay") já é fato inconteste. Ali também se ordenou a infantaria digital a afirmar equivalência entre a graça concedida a Silveira por Bolsonaro e o refúgio concedido a Battisti por Lula. Criar equivalência onde há diferença, e vice-versa, é método de onde emergem muitas teses do ilegalismo autoritário.

Há muitas maneiras de "fechar" o STF sem fechar o STF. Não precisa de um soldado e um cabo, nem invocar o artigo 142 da Constituição, onde milicos decodificaram autorização para golpe (ou "intervenção militar constitucional"). Mais fácil é tornar a instituição inócua e indigna de respeito. Ou fazê-la renunciar, voluntariamente, sua autoridade.

A verborragia incontida de ministros colabora nessa renúncia. Ainda que se deva falar de forma contundente dos riscos que corre o tribunal, a cacofonia individualista não ajuda. Não se joga esse jogo sem coordenação estratégica entre ministros.

Enquanto o presidente da República, além de mandar ministros calarem a boca, avisa outra vez que não vai obedecer decisão que o contrarie (como no caso do "marco temporal" de terras indígenas, da graça concedida a Silveira etc.), cresce a pressão sobre o STF para reabrir "vias de comunicação com o Planalto", ou, no glossário de Toffoli (que também chama ditadura militar de "movimento"), por "diálogo".

O STF tem flertado, desde a presidência de Toffoli, seguida por Fux, com a prática do entreguismo constitucional e da negociação de constitucionalidade. A atitude talvez salve a própria cabeça de ministros, mas não salva a biografia nem a democracia, nem as vidas à margem que estão na mira da violência bolsonarista. Comecemos por usar as palavras certas, não as diversionistas, para descrever o que vemos.

O STF precisa de apoio, cautela e clarividência, não de capitulação. De colegialidade contra o individualismo obstrucionista e boquirroto. A capitulação, afinal, libera de vez o bolsonarista da esquina. Ele não só ameaça. Ele estupra e mata criança yanomami, por exemplo.

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