O País tem recursos escassos para investimentos e a máquina pública está à míngua. Sem dinheiro, o Incra, órgão responsável pela reforma agrária, suspendeu as atividades e cancelou eventos. O estado de São Paulo deixou de receber transferências voluntárias do governo federal. Mesmo assim, nunca houve tanta fartura em Brasília. Bolsonaro e Hamilton Mourão bateram o recorde no uso do cartão corporativo. Só neste ano, já torraram R$ 9 milhões em verbas secretas, um recorde. O Congresso autorizou a União a elevar em R$ 25 milhões as despesas com propaganda em pleno ano eleitoral.
No ano passado, boa parte dos recursos do Fundo Nacional de Saúde, que conta com R$ 7,4 bilhões, foi usado por caciques do Centrão para emendas de relator em seus redutos eleitorais. A utilização paroquial, sem controle técnico, subiu 112%. E esse desequilíbrio não ocorre ao acaso. O presidente subverteu o uso do dinheiro público para viabilizar sua reeleição e beneficiar seu clã e aliados. O melhor exemplo desse quadro escabroso é o orçamento secreto, um esquema dissimulado de desvios por meio de emendas parlamentares sigilosas. Trata-se de uma sabotagem no uso do dinheiro do contribuinte. Na prática, é como se orçamento tivesse sido sequestrado pelo presidente pela cooptação de parlamentares com verbas para seu benefício político. Uma forma mais sofisticada de desvio do que as expostas nos escândalos do Mensalão e do Petrolão.
E isso apesar de ser muito claro o trecho constitucional que determina aos Três Poderes o respeito a alguns princípios básicos como a publicidade, a moralidade e a impessoalidade. As regras não são em vão. Servem para obrigar os governantes eleitos pelo voto a prestarem contas à sociedade, além de traçarem planos e executarem o dinheiro do contribuinte em alinhamento às prioridades nacionais, deixando de lado interesses políticos e particulares. Mas, na contramão da Carta Magna, com o orçamento secreto, abastecido pelas chamadas emendas de relator, tanto o Congresso quanto o governo Bolsonaro demonstraram total desprezo aos preceitos fundamentais que regem o País.
Um apanhado de 100 anexos repassados pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, ao STF nos últimos dias expõe parte da farra bilionária de deputados e senadores com dinheiro público em 2020 e 2021. “Parte” porque os documentos foram rascunhados pelos próprios parlamentares, quando notificados pela Mesa Diretora sobre a ordem da Corte para o detalhamento das emendas secretas nesse período, e, sobretudo, em razão de que nem todos os congressistas responderam. Assim, na prática, somente R$ 11 bilhões dos R$ 36,9 bilhões distribuídos pelo País nos últimos dois anos por meio de emendas de relator foram mapeados — os números representam 30% do total gasto.
Mesmo incompletos, os dados servem para ilustrar como o presidente cooptou o Parlamento. Os relatórios mostram que deputados e senadores alinhados ao Planalto conseguiram emplacar boladas e boladas de dinheiro em seus currais eleitorais, enquanto a oposição ficou à míngua. Nesse jogo de “ganha-ganha”, congressistas bolsonaristas ficaram bem perante seus estados e o capitão, além de pavimentar a fama de tocador de obras, conquistou um apoio desproporcional à gestão e ao plano de reeleição.
Trata-se de uma nova versão do escândalo dos Anões do Orçamento, agora turbinado e com algumas importantes distinções. Se, na década de 90, eram parlamentares do baixo clero os empenhados na manipulação de emendas e no desvio de recursos públicos por meio de entidades sociais fantasmas ou superfaturamentos, hoje a farra tem nomes afinados com a Presidência. Ao todo, parlamentares do núcleo duro do Centrão, formado por cinco partidos que dão sustentação ao governo no Congresso — PL, PP, Republicanos, PTB e PSC —, indicaram o destino de 50% das emendas informadas ao STF, o que equivale a R$ 5,45 bilhões. A lista dos parlamentares conta com nomes ilustres, como Eliane Nogueira, mãe do todo-poderoso Ciro Nogueira. Primeira suplente do filho, a advogada ascendeu ao Senado em 2021, quando o cacique do Progressistas assumiu a Casa Civil. Eliane pouco faz no Legislativo. Em menos de um ano de mandato-tampão, apresentou apenas um projeto de lei, que prevê a identificação do perfil genético de condenados, e discursou dez vezes. Se faltam propostas, sobram viagens internacionais — ela já usou o dinheiro do Congresso para embarcar rumo à Europa duas vezes.
A poderosa mãe de Ciro
Apesar da baixa produtividade, Eliane conseguiu a façanha de, em cinco meses, ditar os rumos de R$ 399,2 milhões do orçamento secreto. Falta transparência nos dados. Mas, conforme o ofício redigido pela senadora, a maior parcela, cerca de R$ 161 milhões, foi destinada ao Ministério da Saúde para investimentos na Atenção Primária e em procedimentos de alta complexidade. A pasta ainda recebeu outras duas transferências — uma de R$ 8,2 milhões para a compra de ambulâncias e outra de R$ 5,6 milhões para a aquisição de veículos e equipamentos. As emendas da mãe de Ciro ainda contemplaram, por exemplo, o DNOCS, o FNDE e os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Agricultura, órgãos que estão no centro de suspeitas de corrupção.
A estatal do centrão
O poderio, que, por óbvio, emana de Ciro e não de Eliane, não é pouco. A verba movimentada pela senadora entre agosto e dezembro de 2021 supera, por exemplo, os R$ 357,4 milhões indicados por Arthur Lira, presidente da Câmara, em dois anos para irrigar Alagoas, seu reduto eleitoral. Do total, o deputado do Progressistas repassou pouco mais de R$ 6 milhões para Barra de São Miguel, município comandado pelo ex-senador e pai dele, Benedito de Lira — a cidade, segundo o IBGE, tem uma população estimada de 8.434 pessoas. O parlamentar ainda investiu pesado na Codevasf, apelidada de “estatal do Centrão” em razão da ascendência do grupo sobre os cargos estratégicos — foram 93,8 milhões de reais depositados na pasta que já comprou tratores e maquinários com sobrepreço, conforme apontou a Controladoria-Geral da União.
Eliane fica atrás apenas de Márcio Bittar. Em 2020, o parlamentar movimentou R$ 7,9 milhões em emendas secretas — do total, R$ 7 milhões foram investidos no Ministério do Turismo para o “desenvolvimento e fortalecimento da economia criativa”. No ano seguinte, quando atuou como relator-geral do Orçamento, Bittar viu o quão vantajosa pode ser a interlocução com o Planalto e direcionou R$ 356,9 milhões ao Acre, seu estado natal. Somente na implementação de infraestrutura básica na região de Calha Norte, um bairro que reúne nove pequenos municípios, o senador aplicou R$ 49,7 milhões — as obras tocadas no setor, porém, não foram descritas.
Engajada no controle social do poder público e “amicus curiae” na ação que contesta o orçamento secreto, a Transparência Brasil critica as lacunas deixadas pelo Congresso na papelada repassada ao STF e fala em uma “transparência de fachada”. O diretor-executivo da entidade, Manoel Galdino, entende que, para viabilizar a sistematização de dados, os parlamentares tinham de preencher um “formulário-padrão”, com a exigência das mesmas informações de todos. Ele antecipa que a organização da sociedade civil trabalha em um memorial para convencer o Supremo a cobrar o complemento da documentação, o qual deve ser entregue à relatora do processo, ministra Rosa Weber, no próximo mês.
Galdino explica que o controle sobre a execução dos recursos precisa ser ampliado para evitar o escoamento do dinheiro público. “O orçamento secreto é um gasto que não passa por análise técnica ou de pertinência e relevância, tampouco segue orientações da Constituição para reduzirmos desigualdades e tornarmos o país um lugar mais justo”, pontua. O diretor-executivo da Transparência Brasil acrescenta que o gasto tende a ser ineficiente. “Você coloca uma emenda em um ano em uma obra e, no outro ano, deposita em outra. No final das contas, as duas acabam paralisadas e há o desperdício”, emenda, frisando que, longe das lupas dos órgãos de fiscalização, as emendas são um prato cheio para novos casos de corrupção.
No Congresso, aliados de Rodrigo Pacheco admitem as lacunas, mas argumentam que, mesmo como presidente do Congresso, o senador não tem poder regimental para obrigar os colegas a entregarem uma documentação completa. Aliados dele acrescentam que, agora, “a bola está com o STF”. Do lado do Supremo, a expectativa é que Rosa, conhecida como “linha-dura”, de fato mande o Congresso encorpar o material. A ministra não sinalizou a tendência aos pares, dado o perfil discreto — de tão fechado, o gabinete da magistrada é chamado nos bastidores de “Coreia do Norte”. As previsões são ancoradas nos duros votos dados por Rosa no final do ano passado ao tratar do tema. Quando surpreendeu Planalto e Parlamento ao suspender a execução das emendas, a ministra anotou que congressistas haviam criado dois regimes para as indicações, sendo que um é transparente e o outro é um formato “anônimo”.
O lado “secreto” do orçamento federal serviu, por exemplo, para garantir recursos às bases eleitorais dos senadores que integraram a “tropa de choque” do governo Bolsonaro na CPI da Covid. Um dos mais alinhados ao Planalto, Marcos Rogério, que, em 2020, havia conseguido R$ 84,1 milhões de reais para Rondônia e, no ano seguinte, viabilizou mais R$ 100 milhões. O dinheiro, em tese, bancou da compra de pás carregadeiras — aquelas que transportam materiais como areia, brita, terra, entulhos e minérios — e de patrulhas mecanizadas à construção de praças, pistas de caminhada e centros esportivos.
Enrolados na justiça
Está no Rio Grande do Sul, porém, o caso mais emblemático. Entusiasta do chamado “tratamento precoce”, Luis Carlos Heinze não foi contemplado com as emendas de relator em 2020. No ano seguinte, no entanto, emplacou R$ 36,5 milhões para o estado. A situação de Jorginho Mello, correligionário de Bolsonaro, também é ilustrativa. O congressista, que, dois anos atrás, mandou R$ 17,9 milhões para Santa Catarina, melhorou a performance em 2021, quando a cifra saltou para R$ 46,5 milhões.
A farra com verba pública beneficiou, ainda, parlamentares enrolados na Justiça. Nem mesmo a operação policial que flagrou Chico Rodrigues com dinheiro entre as nádegas maculou a influência do congressista sobre o orçamento. Em 2020, quando passou pelo escatalógico episódio, o senador indicou 28,8 milhões de reais em uma emenda de relator. No ano seguinte, Rodrigues descolou sete, no valor total de R$ 47,8 milhões. Nada mal para um congressista que está sob a mira da Polícia Federal sob a suspeita, justamente, de desviar recursos de emendas parlamentares — os investigadores o acusam da prática dos crimes de peculato, advocacia administrativa, embaraço às investigações e lavagem de dinheiro.
A máquina de desviar dinheiro é tão eficiente que conseguiu atrair nomes da oposição. Um conhecido crítico do orçamento secreto, o deputado Mario Heringer, do PDT mineiro, admitiu a utilização dos recursos afirmando que não seria “inocente” ao abrir mão deles. Usou R$ 6,5 milhões. Igor Timo, o líder do Podemos, partido que tentou se alinhar à Lava Jato lançando Sergio Moro ao Planalto, apadrinhou R$ 68,3 milhões para obras em seu estado. Os filhos do presidente também abocanharam uma fatia. O deputado Eduardo Bolsonaro admitiu o uso das RP-9 para mandar R$ 9,5 milhões para 25 municípios paulistas — entre eles, Miracatu, no Vale do Ribeira, onde seu tio, Renato Bolsonaro, é chefe de gabinete da Prefeitura. Não deixa de ser irônico que o dinheiro tenha passado pelas mãos do clã que, tão bravamente, alardeia que “a mamata acabou”.
As milhares de páginas repassadas ao Supremo, na verdade, mostram o contrário. Capitaneada por Bolsonaro, a casta de aliados do Planalto concentra em mãos dinheiro que poderia ser investido, com critérios técnicos e objetivos, em saúde, educação, infraestrutura e saneamento básico nos municípios que mais necessitam e, não, naqueles aos quais o repasse convém para a mera e simplória conquista de votos. O País, em crise, assiste atônito o dinheiro público ir pelo ralo — e para os bolsos de muitos — em vez de prestar auxílio a quem faz a máquina girar. Com o sequestro do orçamento, o presidente e sua trupe minaram os principais objetivos da Nação: a construção de uma sociedade justa e a redução das desigualdades sociais e regionais. No escândalo dos Anões, poucos foram punidos. A história se repetirá também no segundo ato?
Nenhum comentário:
Postar um comentário