O governo Bolsonaro acaba com a reforma agrária e abala as entidades de sustentação do movimento
Do presidente Jair Bolsonaro pode-se dizer muita coisa – mas não se pode acusá-lo de falta de coerência. Ele tem sido absolutamente fiel à promessa feita logo no início do seu mandato, ainda em 2019, de que iria “desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa”. Essa vocação destrutiva agora se confirma também em relação à política nacional de reforma agrária, que ele delegou a ruralistas contrários aos movimentos sociais de luta pela terra. Em 2022, o governo federal destinou apenas R$ 2,4 milhões para a aquisição de propriedades rurais com essa finalidade, o que não é nada num universo estimado de 80 mil famílias de agricultores sem terra na fila do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Há dez anos, o governo investiu R$ 930 milhões no setor, o que significa dizer que Bolsonaro aplicou somente 0,25% do que se destinava ao assentamento de famílias paupérrimas em busca de uma pequena propriedade agrícola para seu sustento e da sua família: é o fim da reforma agrária.
Depois da redemocratização em 1985, a distribuição de terras para trabalhadores rurais vinha sendo levada a cabo como política de Estado, intensificando-se, porém, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Só nesse período, 540 mil famílias foram assentadas em 20,8 milhões de hectares de terras desapropriadas. De 2019 pra cá, foram apenas 9 mil famílias fixadas em 2,8 mil hectares. O Incra, criado para realizar a reforma agrária e dar suporte para que essas famílias tivessem condições de produzir, foi esvaziado e passou a ser um mero emissor de títulos de propriedade provisórios ou definitivos para as famílias já assentadas. “Foram 340 mil documentos emitidos desde 2019”, diz o presidente da autarquia, Geraldo Melo Filho, sem reconhecer o fracasso do plano nacional no atendimento aos sem-terra.
Para Bolsonaro, essa é a principal razão pela qual “não se ouve mais falar em invasão do MST” no seu governo – embora continuem ocorrendo ocupações de terras. “Ninguém mais passa com ônibus num assentamento e diz ‘entra aí, a gente vai invadir uma fazenda ali na frente e se não for junto, a gente toma a terra de você’. As pessoas agora são donas do seu pedaço de terra, os títulos são uma carta de alforria para elas, que antes eram usadas pelo MST”, disse o capitão em uma live feita, há 15 dias, com a presença do presidente do Incra. De quebra, o mandatário tenta explorar politicamente a entrega dos títulos aos beneficiários no que até recentemente era considerado um feudo dos petistas, que ficaram 13 anos do poder e também usaram os sem-terra como massa de manobra.
Armados até os dentes
Além disso, desde o início do seu governo, Bolsonaro vem incentivando o armamento da população e facilitando a compra, a posse e o porte de armas, permitindo que os fazendeiros possam se armar até os dentes para enfrentar os sem-terra que tentam invadir suas propriedades. “A posse da arma agora vale em todo o território da fazenda. O proprietário rural monta no cavalo ou no trator e leva a sua arma. Fica difícil pro marginal do exército do Stédile querer invadir alguma coisa”, vangloriou-se Bolsonaro na live.
O quadro é de desalento. Para a doutora em Ciência Política Mayrá Lima, pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades da UnB, se não é possível falar em finitude da reforma agrária no Brasil, há um “boicote severo” à política de distribuição de terras que historicamente vinha sendo implementada no País. “Houve uma brutal redução orçamentária para a compra de terras com essa finalidade, ao mesmo tempo em que o governo comemora o aumento de emissão de títulos de propriedade para os já assentados. É preciso ter nítido que a titulação das terras já ocupadas não é a mesma coisa do que a democratização da terra: há ainda milhares de trabalhadores rurais sem acesso a ela”.
Juntamente com o fim da reforma agrária, as entidades criadas para atuar no setor, como é o caso do Movimento Sem Terra (MST), praticamente sucumbiram. Já não realizam mais tantas ocupações de terras e as tradicionais caminhadas dos sem-terra. Durante os governos do PT (2003 a 2016), esses organismos não possuíam sequer CNPJ, mas recebiam verbas públicas milionárias, além de contribuições vindas do exterior em nome de empresas associadas, mas que jamais tiveram o controle governamental ou dos órgãos como TCU ou MP. Lula, inclusive, nunca escondeu suas ligações com o movimento e durante seu governo chegou a pousar com o boné usado pelos seguidores da causa e irrigou o setor com muito dinheiro dos cofres públicos.
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