Em meio às investigações contra a invasão do Capitólio no ano passado, estimulada pelo ex-presidente Donald Trump para contestar a vitória de Joe Biden, o Congresso americano debate a inclusão no próximo orçamento de Defesa, a ser aprovado nos próximos meses, cláusulas que devem punir o Brasil no caso de os militares interferirem no pleito de 2 de outubro. Uma lei proposta por parlamentares democratas pede que o governo americano investigue se as Forças Armadas brasileiras estão interferindo no pleito. Ela estabelece que os EUA vão considerar uma tentativa de golpe de Estado ações visando parar ou obstruir a contagem de votos por autoridades eleitorais, manipular ou reverter os resultados das eleições, questionar os resultados e encorajar, incitar ou facilitar manifestações presenciais ou contestações ao processo eleitoral.
É um alerta de como os EUA consideram séria a possibilidade de os militares brasileiros agirem para subverter os resultados por orientação de Bolsonaro. Dando razão a esses temores, o presidente reforça seu time armado. O presidente frustrou a ala política do seu comitê e escolheu para o posto de vice em sua chapa no dia 1º um dos militares mais fiéis e radicais de seu entorno, o general Walter Braga Netto. Uma das razões, é claro, é a ideia de o presidente se blindar contra um impeachment em um eventual segundo mandato. Sem traquejo político nem apoio entre parlamentares, Braga Netto seria uma espécie de antídoto natural contra uma eventual tentativa de os congressistas investirem na troca do presidente. Mas essa não é a principal razão para Bolsonaro ter confirmado o militar na sua chapa. Ele ajuda a associar Bolsonaro às Forças Armadas. O presidente aposta todas as suas fichas na força dos militares para reverter a situação cada vez mais desfavorável no cenário eleitoral, já que nem a PEC Kamikaze nem as bilionárias benesses eleitoreiras têm conseguido alterar os números das pesquisas que apontam Lula com grandes chances de levar no primeiro turno.
A ala política da campanha de Bolsonaro lamentou a escolha de Braga Netto porque sabe que, eleitoralmente, o nome não agrega à reeleição. Como não é bom de voto nem de palanque, uma das missões “oficiais” passou a ser ajudar na arrecadação de recursos para a campanha. Ele deve viajar pelos estados onde estão os maiores doadores (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) para tentar conversar com empresários, além de prefeitos que serão cruciais para a construção de palanques nos estados em que Bolsonaro não tem o apoio de candidatos ao governo. Também falará com representantes do setor de segurança pública, sobretudo no Rio, onde foi interventor.
“As Forças Armadas estavam quietinhas em seu canto e foram convidadas pelo TSE a participar de uma comissão. Não duvido do sistema e atuo com espírito colaborativo” Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa
“General, as Forças Armadas devem permanecer quietinhas. Insistir nessa agenda de pressão cínica sobre a Justiça é sinalisar que o Brasil caminha rumo a um golpe de Estado” Joaquim Barbosa, ex-presidente do STF
O apoio empresarial, se vier, ainda precisará ser avaliado. Mas seus recados sobre a intenção do presidente de melar as eleições já foram dados e reforçam seu papel no pleito. Em julho do ano passado, ele avisou ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que sem o voto impresso não haveria eleições em 2022. Com a péssima repercussão após o vazamento da conversa, negou que tivesse dado esse recado. No mês seguinte, no dia em que essa mudança foi rejeitada no Congresso, Bolsonaro providenciou um desfile de tanques na Praça dos Três Poderes para intimidar os parlamentares. No último dia 24, em um encontro na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), Braga Netto voltou a fazer ameaças. Disse a empresários que sem a auditoria nos votos defendida por Bolsonaro “não haveria eleição”. Depois, disse que sua fala foi “tirada de contexto” e negou que tenha ameaçado o pleito. Não convenceu. Na última segunda-feira, o líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes, acionou o Ministério Público do Distrito Federal para investigar o general por sua fala.
Após deixar o cargo de assessor especial da Presidência em razão da lei eleitoral, Braga Netto deu início à rotina de despachos no QG da campanha em Brasília, estruturado em uma mansão no Lago Sul. Ao lado de Flávio Bolsonaro, participa do planejamento de viagens e agendas. Mas o novo figurino foi colocado à prova no primeiro evento em que se postou ao lado do chefe, em uma reunião no Planalto, na terça-feira, 5, que tinha como objetivo principal, em tese, a orientação aos ministros para a divulgação dos feitos do governo.
A lista de realizações, que, aliás, foi arquitetada por ele próprio, teve papel secundário. O encontro virou mais uma sucessão de ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral. O clima da reunião, para dois interlocutores presentes, demonstra que o discurso de desconfiança sobre as urnas será reforçado por Braga Netto e Bolsonaro. O presidente afirmou que, se as eleições não “forem limpas”, ele não participará do pleito. E disse que só vai aceitar os resultados se as sugestões das Forças Armadas ao TSE sobre segurança das urnas forem acatadas. Esse discurso foi referendado pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira.
Meia-verdade
O general cerrou fileiras em torno do discurso presidencial contra a Justiça Eleitoral. Voltou a falar que nenhuma das dúvidas levantadas pelas Forças Armadas nas reuniões sobre a segurança das urnas foi respondida pelo TSE. É uma meia-verdade que deturpa o papel da Justiça Eleitoral. O Tribunal convidou as Forças Armadas a participarem da Comissão de Transparência das Eleições em setembro exatamente para evitar que os militares fossem instrumentalizados para contestar o pleito. Mas a iniciativa virou um tiro no pé. O general passou a agir alinhado ao presidente, que deseja desacreditar o TSE e colocar o processo eleitoral sob tutela dos militares, ao arrepio da Constituição.
Na mesma reunião ministerial, Braga Netto causou constrangimento ao tentar colocar todo o primeiro escalão em ordem unida, mesmo que já não exerça nenhum cargo no Executivo. Os outros dois generais palacianos, Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (atualmente na Secretaria-Geral da Presidência), não devem ter papel na campanha, segundo fontes do Planalto. Os dois foram ofuscados pelo protagonismo do Centrão, mas seguirão como “conselheiros” de Bolsonaro. O problema é que essa atuação significa jogar lenha na fogueira dos ataques à democracia, pois os dois já entregaram munição para o presidente atacar as urnas e costumam incentivar os embates com a Justiça. Há outra questão. Na campanha, a segurança do presidente não fica a cargo da PF, mas com o GSI. O general Heleno estará centrado nisso, acompanhando Bolsonaro em todas as agendas.
O Planalto concentra a pressão sobre o TSE por meio dos militares. Mas um evento fundamental para a estratégia será o desfile militar de Sete de Setembro. Embora seja um evento institucional, a parada deste ano terá proporções inéditas e será usada por Bolsonaro como um demonstrativo de força e de apoio dos fardados. A ordem é pela mobilização de um número recorde de tropas e de veículos blindados e aeronaves. Os números ainda não foram fechados — o Ministério da Defesa avalia como ampliar o movimento em Brasília sem esvaziá-lo nas demais capitais, sobretudo onde estão sediados os demais Comandos Militares. O discurso para justificar o “megadesfile” é igual entre membros da Aeronáutica, do Exército e da Marinha: o bicentenário da Independência precisa de uma celebração de maiores proporções para “fortalecer o patriotismo, resgatar o espírito de civismo, rememorar a história e cultuar os vultos e heróis brasileiros”.
Fardados creem que o ministro da Defesa vai acompanhar o presidente nas manifestações do Sete de Setembro em Brasília, repetindo os passos dados por Braga Netto em 2021. A participação dele neste tipo de ato, no entanto, teria um efeito mais danoso do que a de seu antecessor, segundo avaliam generais. Pode transmitir a falsa ideia de que as Forças Armadas, como um todo, referendam a retórica golpista a menos de um mês do primeiro turno das eleições. Pior ainda para a imagem militar será se, em meio à animosidade, bolsonaristas tentarem depredar ou invadir os prédios do STF e do TSE. “Um bom Comandante das Forças Armadas não iria”, questiona um oficial de alta patente.
A ida aos protestos do Comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, por outro lado, é descartada. Militares pontuam que, além de ter um perfil reservado, moderado e técnico, o general é da ativa e, portanto, tem a presença em manifestações políticas vedada pelo regulamento Disciplinar do Exército e pelo Estatuto das Forças Armadas. A presença dele no ato bolsonarista, assim, seria um incentivo à insubordinação. Não que isso já não tenha acontecido: o general Eduardo Pazuello subiu no palanque do presidente no Rio de Janeiro em uma manifestação política, e o Comando do Exército se negou a puni-lo. O comandante era exatamente Paulo Sérgio Nogueira.
Entre os fardados, a previsão até o momento é que ocorrerão manifestações ordeiras no Sete de Setembro. Mas há um monitoramento atualizado quase que semanalmente. Como praxe em dias de grandes manifestações ou protestos, um número elevado de militares ficará aquartelado no Comando Militar do Planalto. Serão mantidos em prontidão para o caso de emergências. No Exército, o pior cenário, o qual, segundo expectativas internas, não acontecerá, aponta para a perda do controle pelas polícias militares na segurança e o consequente emprego da Garantia da Lei e da Ordem, com o envio das tropas para as ruas.
Ministros do STF alinhados a Bolsonaro prometeram aos colegas tentar convencer o presidente a não participar das manifestações de apoiadores, atendo-se ao desfile militar. Mas há pouca esperança de que isso aconteça, daí a preocupação. Nas manifestações do ano passado, quando caminhões avançaram rumo à Esplanada furando o bloqueio de segurança, Fux foi informado de que havia 500 homens de prontidão no subsolo do Palácio do Planalto, mas não viu a necessidade de convocá-los. Neste ano, avalia que há a necessidade de mais segurança. A expectativa é de que a proteção em torno do STF e do TSE seja mais robusta. Além disso, a Secretaria de Segurança do DF pretende aumentar o efetivo nas ruas.
Se os generais bolsonaristas tentam transmitir a imagem de normalidade, no outro lado da Praça dos Três Poderes o clima é de cautela. O presidente do STF, Luiz Fux insiste em uma conciliação. Está aberto a, se houver “necessidade” e “oportunidade”, convidar os representantes das Forças Armadas para uma reunião antes do Sete de Setembro, assim como Bolsonaro. A mudança na presidência na Corte também acrescentou um elemento de tensão. A posse de Rosa Weber, uma magistrada linha-dura que tem sido irredutível na defesa das urnas eletrônicas, deveria acontecer na antevéspera do Sete de Setembro. Ministros ponderaram que, para arrefecer os ânimos, seria melhor realizar a solenidade no dia 12, uma segunda-feira. Fux acatou. A apreensão acontece igualmente no TSE. Respondendo à pressão do general Paulo Sérgio, o presidente da Corte, Edson Fachin, voltou a repelir a ingerência militar.
Durante uma palestra em Washington (EUA), na quarta-feira, Fachin advertiu para o risco da reprodução do episódio da invasão do Congresso dos EUA. “Nós poderemos ter um episódio ainda mais agravado do 6 de janeiro, do Capitólio”, afirmou. Sem citar Bolsonaro nem o ministro da Defesa, ele alertou que existe uma tentativa de transformar a atuação das Forças Armadas no processo eleitoral “numa participação que, ao invés de ser colaborativa, seja praticamente interventiva. Nós não só não aceitamos como não aceitaremos”, afirmou.
No mesmo dia, o general Paulo Sérgio compareceu à Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara e voltou a se queixar de que os militares desejam ter participação maior no processo eleitoral. Mas tentou minimizar a pressão. Junto com os comandantes das três forças, o militar disse que “não duvida do sistema eleitoral e atua com espírito colaborativo para ajudar o TSE”. Questionado por deputados sobre o alinhamento fardado ao presidente, disse que “as Forças Armadas estavam quietinhas em seu canto e foram convidadas pelo TSE a participarem da Comissão de Transparência Eleitoral. Meu envolvimento foi único e exclusivamente por ter sido convidado pelo TSE para fazer parte desse processo”, disse.
Essa fala, obviamente, escamoteia o uso político das tropas. O ex-presidente do STF Joaquim Barbosa, rebateu: “Ora, general, as Forças Armadas devem permanecer quietinhas em seu canto, pois não há espaço para elas na direção do processo eleitoral brasileiro. Ponto. Insistir nessa agenda de pressão descabida e cínica sobre a Justiça Eleitoral é sinalizar ao mundo que o Brasil caminha paulatinamente rumo a um golpe de Estado. Pense nisso, general”. Foi uma rara e precisa manifestação do ex-magistrado, que serve como advertência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário