sábado, 30 de setembro de 2023

CRÍTICA IMPLICA COM FILME CONSERVADOR

Pablo Ortellado, O Globo

Mario Frias, Damares Alves e Eduardo Bolsonaro se mobilizaram para divulgar 'Som da liberdade'

Depois de muita polêmica nos Estados Unidos, estreou no Brasil na quinta-feira passada “Som da liberdade”, do diretor mexicano Alejandro Monteverde. O thriller sobre um ex-agente que se dedica a resgatar crianças sequestradas em redes internacionais de abuso sexual infantil não é apenas um filme independente de sucesso. Foi lançado por meio de uma campanha política conservadora, e sua estratégia de promoção — meio comercial, meio militante — despertou reação muito negativa da crítica.

A produtora do filme, Angel Studios, começou como empresa que oferecia um serviço de filtragem que censurava (silenciava ou pulava) passagens profanas, violentas ou com nudez em conteúdos audiovisuais do streaming. O modelo fracassou depois de ser tragado numa série de processos por violação de direitos autorais. A empresa então se reinventou como produtora de conteúdos religiosos e conservadores, assentada num modelo econômico inovador com dois pilares: financiamento coletivo e compra antecipada de ingressos.

O nome Angel Studios, além da óbvia conotação religiosa, alude também à ideia de “investidores-anjo”. Uma de suas produções, a excelente série “The Chosen”, sobre os seguidores de Jesus, arrecadou mais de US$ 40 milhões com financiamento coletivo. Os doadores foram movidos pela missão religiosa da produção, que buscava difundir uma versão cristã-ecumênica dos evangelhos em linguagem audiovisual “maratonável”.

“Som da liberdade” também foi produzido com financiamento coletivo, tendo arrecadado US$ 5 milhões com 6,7 mil doadores individuais. O apelo aqui, porém, não era diretamente religioso. A motivação dos doadores era combater a exploração sexual infantil, preocupação importante para os conservadores religiosos, mas que vai além deles. O filme conta a história real de um agente federal que combate a pedofilia nos Estados Unidos e, frustrado com suas limitações legais, resolve armar independentemente uma operação de resgate de crianças exploradas sexualmente na Colômbia.

O lançamento nos Estados Unidos foi impulsionado por grandes celebridades conservadoras e trumpistas. No Brasil, Mario Frias, Damares Alves e Eduardo Bolsonaro se mobilizaram para divulgar o filme.

Além da divulgação militante, a produtora incentivou a compra antecipada de ingressos para doação. No final, enquanto os letreiros sobem, o ator Jim Caviezel aparece pedindo à plateia que escaneie um QR Code e, por meio dele, compre três ingressos, doados para mais pessoas verem. Depois, os ingressos gratuitos podem ser retirados pelos interessados na página da produtora. A combinação de financiamento, promoção e doação militantes fez com que o filme liderasse as bilheterias no Brasil nesta semana.

Foi também o caráter militante que, aparentemente, despertou a antipatia da crítica, que recebeu muito mal “Som da liberdade”. O filme é apelativo e tem algumas deficiências técnicas, mas o incômodo foi de natureza política. Embora não tenha nenhuma referência política direta e não faça nenhuma menção a teorias conspiratórias, foi acusado de veladamente promover a teoria da conspiração Q-Anon — segundo a qual, políticos de esquerda e artistas de Hollywood estão envolvidos em redes de exploração sexual infantil. Para esses críticos, a principal ligação entre a teoria da conspiração e o filme é a declaração de Jim Caviezel numa entrevista dizendo que via as ideias do QAnon como “uma coisa boa”.

A revista Rolling Stone sugeriu que o filme “promove o pânico moral com a ‘epidemia’ grosseiramente exagerada de tráfico sexual infantil, conduzindo a população a armadilhas conspiracionistas”. No Brasil, Tony Goes disse no site F5 que “o longa caiu nas graças da extrema direita, que viu representada na tela uma de suas fantasias mais delirantes: políticos do Partido Democrata americano estariam por trás do tráfico de crianças, para extrair delas um suposto soro da juventude”.

Tentar ver uma mensagem conspiratória no filme a partir da entrevista de um dos atores é, a meu ver, o mesmo que enxergar uma mensagem política subliminar na novela porque José de Abreu deu uma declaração em algum site petista.

Vamos parar de implicar com o filme e celebrar que os conservadores se mobilizam agora contra a exploração sexual infantil, causa nobre de direitos humanos. Há pouco tempo, os mesmos ativistas estavam convocando acampamentos nos quartéis para derrubar nossa democracia. É melhor assim.

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