Cresceram nos últimos meses o irracionalismo, a barbárie no comportamento público e a defesa de posições autoritárias e sectárias. É preciso denunciar e superar esse fenômeno
Um mal vem se impondo de várias maneiras na realidade política brasileira: o negacionismo em suas múltiplas formas. Pensava-se que com o fim da pandemia, a derrota (re)eleitoral de Bolsonaro e o fracasso do golpe de 8 de janeiro, o país estaria livre dessa ameaça e voltaria a ter um debate mais racional e pluralista. Depois de quatro anos de obscurantismo, sonhava-se em ter todos os principais atores políticos comprometidos com a democracia e a civilidade. Ledo engano. Cresceram nos últimos meses o irracionalismo, a barbárie no comportamento público e a defesa de posições autoritárias e sectárias. É preciso denunciar e superar esse fenômeno, antes que as portas do futuro se fechem para o Brasil.
Hoje, o negacionismo não diz respeito apenas à vertente anticientífica que grassou no período da pandemia da covid-19. Ele se manifesta de cinco maneiras no Brasil atual. A primeira é a disseminação contínua de fake news como forma de organizar o debate público. A segunda é a negação da ciência e das evidências na discussão sobre políticas públicas, tendo como o exemplo mais cruel, porque está matando pessoas, a questão ambiental. A terceira é o posicionamento extremista contra o papel do Estado e das suas principais instituições, defendendo uma ordem em que uma sociedade quase anárquica resolveria todos os problemas coletivos. A quarta é o sectarismo religioso que luta contra o pluralismo de valores da vida moderna. Por fim, a democracia é posta em xeque, alimentando o espírito que quase gerou um golpe de Estado no país.
A lógica das fake news como forma de desvirtuar o debate público é o negacionismo originário. Ela tem como pressuposto a construção de uma “realidade alternativa”, como diriam os trumpistas, cujo propósito não é apenas negar os fatos em sua manifestação mais óbvia. Procura-se atingir a legitimidade dos principais meios de expressão do mundo moderno, como a imprensa e a universidade. É como se dissessem: há uma outra fonte realmente verdadeira que deve ser disseminada e defendida, presente sobretudo nas redes sociais. Nelas são desmascarados aqueles que oprimem o “homem comum” e suas crenças. Mentiras deslavadas transformam-se em revelação de uma verdade mais profunda.
Tal processo não é neutro nem natural. Embora milhões de pessoas participem desse jogo de disseminação de mentiras, há lideranças claras e formas disseminadoras muito bem-organizadas, com objetivo evidente de deslegitimar aquilo que pode ser chamado de sistema. Por trás da pretensa naturalidade desse modelo, há um projeto de poder e sociedade diferentes tanto da democracia quanto daquilo que Popper denominava de “sociedade aberta”. O pluralismo, a ciência, o jornalismo, a política democrática e os especialistas da burocracia governamental são inimigos que devem ser vencidos por uma nova verdade, homogênea e controlada por influenciadores extremistas que nunca se submeteriam ao contraditório democrático. O “Grande Irmão” é o ovo da serpente das fake news.
Há uma confusão recente neste debate. Alguns defendem que esse fenômeno é apenas uma expressão de posições diferentes de mundo. Porém, as fake news estão mais para o sujeito que anuncia mentirosamente a chegada do fogo num cinema lotado. Cria-se um fato em cima do que não existe, o que, evidentemente, não é uma “outra opinião”. O problema é que esse negacionismo mata pessoas, cria pânico e desarranjo social, deslegitima o sistema democrático e busca eliminar outras opiniões. Vale aqui a máxima de Popper: tolerar o intolerante é permitir a criação de um mundo norteado pela intolerância, cuja natureza é sempre autoritária.
O mundo dominado pelas fake news não pode acreditar na ciência. Mais do que isso: ela é sua inimiga. Daí que essa segunda forma de negacionismo luta ferozmente contra a utilização de evidências para se pensar políticas públicas. Foi assim no caso da tentativa de deslegitimação da vacina, como tem ocorrido também na discussão da questão ambiental. O resultado desse comportamento cego quanto à mudança climática já está rendendo desastres e mortes no país.
Embora os governos federal, estaduais e municipais, de vários partidos, estejam devendo em termos de efetividade de políticas públicas, a principal fonte do desequilíbrio ambiental são os que têm vencido o debate legislativo do país, especialmente no Congresso Nacional. Daqui para diante, toda vez que os congressistas aprovarem leis que podem piorar a situação climática, o certo seria lembrar o que está acontecendo agora no Rio Grande do Sul e responsabilizá-los por tais tragédias.
É preciso dizer que os líderes do negacionismo nas redes sociais, partidos políticos e no Congresso Nacional disseminam ideias que condenam o futuro dos nossos filhos e netos. Desmatamento na Amazônia e no Cerrado, barreiras para a demarcação de terras indígenas, uso desmedido de agrotóxico, incentivo à ocupação de áreas de encostas, urbanização que destrói áreas verdes, tudo isso é responsabilidade de negacionistas que, se vencerem o debate público, teremos mais eventos climáticos extremos, multiplicando mortes e destruição.
Os negacionistas estão indo além da cegueira deliberada contra a questão climática. Estão atrapalhando a ação de resgate e proteção dos atingidos pelo desastre no Rio Grande do Sul. Espalham mentiras cotidianamente, incentivam brigas entre pessoas que estão em território gaúcho, alimentam intrigas não importando se isso pode causar mais mortes ou dificultar o amparo dos desabrigados. Nessa cruel jornada pela confusão e desunião, o negacionismo tem aqui uma terceira manifestação: uma visão radical contra toda ação estatal e de seus agentes.
Não só os políticos adversários são criticados. As Forças Armadas passam por uma gigantesca campanha de difamação, com mentiras escancaradas. Ao destilarem ódio contra os militares que estão colocando em risco a própria vida para salvar outras pessoas, os negacionistas divorciaram-se de vez de todos os integrantes do Estado. Mesmo as polícias estaduais, que são geralmente reverenciadas pelo bolsonarismo, entraram na roda das fake news quando os negacionistas inventam histórias negativas sobre o papel dos brigadistas gaúchos. No fundo, estão defendendo uma visão quase anarquista de sociedade, presente no slogan “civil salva civil”, isto é, os agentes públicos não salvarão o Rio Grande do Sul - e nem o país.
Os estudos em administração pública e ciência política mostram que a resolução dos problemas coletivos mais importantes passa por formas de colaboração entre Estado, mercado e sociedade. Nenhum desses entes pode equacionar sozinho questões tão complexas como a do megadesastre ocorrido em terras gaúchas. É pura ideologia barata propor uma dicotomia irreconciliável entre a ação estatal e a parceria com voluntários e associações da sociedade civil. Pelo tamanho da tragédia, não seria possível, matematicamente, resolver esse problema sem atores governamentais que possuem recursos humanos e financeiros que nenhum outro ator coletivo tem.
É bem provável que os negacionistas estejam aqui querendo desmoralizar governos e os funcionários públicos para apagar o desastre da política bolsonarista contra a covid-19. Mas, além disso, alimentar uma visão antiestatista radical é uma forma de deslegitimar o sistema, a finalidade máxima dos negacionistas. Só que se essa visão fosse colocada em prática, haveria muito mais chances de o resultado ser o mundo de Mad Max, gerando a guerra de todos contra todos hobbesiana. E o caos seria o formato ideal para que o negacionismo implementasse um modelo totalitário.
O negacionismo também se organiza, numa quarta vertente, pela luta contra os ideais de uma sociedade moderna e pluralista. A sua manifestação mais perigosa é uma “khomeinização” da lógica política, ou seja, subordinar todas as esferas da vida social a uma visão única e sectária de religião. Se os negacionistas brasileiros continuarem nessa toada de sempre subordinar a leitura da realidade política e social à sua estrita moralidade religiosa, o Brasil poderá ter um futuro mais parecido com o Irã das últimas décadas, comandado por autoritários e sem espaço para a divergência e a diferença. É assustadora essa possibilidade, e deveríamos começar a pensar nela ao ouvir os discursos de Nikolas Ferreira e Michelle Bolsonaro.
O modelo negacionista desemboca, ao final, na tentativa de destruir a democracia. Não será possível tomar o poder e realizar o que o negacionismo promete sem derrubar todas as instituições que sustentam o regime democrático brasileiro, como o STF, o federalismo, as eleições livres, uma mídia independente e o próprio Congresso Nacional. Por isso espanta que congressistas não pertencentes à extrema direita aceitem conversar sobre a anistia geral e irrestrita a quem tentou o golpe de Estado no Brasil. Salvar os participantes e incentivadores do 8 de janeiro é negar os fatos e a defesa da democracia.
A vitória do negacionismo é possível no atual cenário brasileiro. Caso isso ocorra, muitas mortes ocorrerão pela descrença na ciência, pela intolerância religiosa ou por meio do autoritarismo advindo de um líder bolsonarista. Parte dos democratas nega esse risco. Tomara que esse grupo esteja certo, porque o que está em jogo é o fortalecimento de uma política que pode destruir o país em todos os sentidos.
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