Nestes momentos, os defeitos de nosso caráter nacional submergem para que emerja a nossa tradição camponesa do auxílio mútuo, da ajuda incondicional ao desvalido
A tragédia das enchentes e escorregamentos no Rio Grande do Sul, apesar de todas as mudanças negativas havidas na mentalidade do povo brasileiro desde 2013, mobilizou mais uma vez o espírito comunitário da nação. O sentido ocultamente transformador dessa grande tradição de silêncio social criativo revela-se na desconstrução da estrutura social brasileira, cada vez mais marcada por tensões e antagonismos sociais.
Desde o regime militar, acentuada e estimulada no regime negacionista recente, essa grande tradição social tem sido satanizada como comunista, que não é. Ainda nestes dias, em meio ao desamparo e à morte, os agentes do mal, por ação e omissão, conspiram e omitem-se.
O que é estranho a nossas tradições de cordialidade, as da precedência dos sentimentos em relação ao afã de riqueza e poder, como sugere, de outro modo, a famosa interpretação de Sérgio Buarque de Holanda.
Nestes momentos, os defeitos acumulados de nosso caráter nacional, os da exploração do outro, da cobiça, da injustiça, da vontade de mando e dominação, submergem para que emerja nosso comunitarismo de fundo familístico. O da precedência de nossa grande tradição camponesa do auxílio mútuo, do mutirão, da ajuda incondicional ao desvalido.
Algo enraizado na cultura do joaquimismo, o da concepção da Terceira Era, de Joaquim de Fiore, monge cisterciense, calabrês, do século XII, a do advento do tempo do Espírito Santo. Muito influente na formação de Portugal e mesmo do Brasil. Um tempo definitivo de fartura, liberdade e alegria.
Aqui, a festa popular de Pentecostes não coincide com a festa litúrgica. Ela se dá após a colheita e ocorre em três dias de celebrações, da comunhão da porta aberta e da mesa comum.
No joaquimismo, a concepção da realidade é invertida, a realidade social passa a ser vivenciada de cabeça para cima, já que a realidade de iniquidades é a do mundo de cabeça para baixo. A devoção do Divino é encontrada no Brasil inteiro. Estava em Canudos e no Contestado.
Aqui, inspirada em cântico recolhido no norte de Minas, “Bandeira do Divino”, de Ivan Lins e Vitor Martins, celebra esse comunitarismo da grande promessa de um tempo novo: “Os devotos do Divino vão abrir sua morada pra bandeira do Menino ser bem-vinda, ser louvada./ Deus nos salve esse devoto pela esmola em vosso nome dando água a quem tem sede dando pão a quem tem fome./ Que o perdão seja sagrado, que a fé seja infinita, que o homem seja livre, que a justiça sobreviva”.
Esse espírito joaquimita veio à tona do sofrimento de agora, nas formas concretas de acolhimento e amparo às vítimas por parte de gente do país inteiro, sobretudo a das comunidades locais. A única prontidão generosa e efetiva veio-nos dessa inspiração histórica.
Satanás, contudo, inverte o que o Espírito desinverteu. Ladrões, saqueadores de casas de moradores que foram para os abrigos e estupradores têm se aproveitado da vulnerabilidade dos desvalidos. Voluntários da ajuda são atacados. Delinquentes difundem nas redes sociais fake news para prejudicar as medidas de socorro às vítimas e colher dividendos políticos das maldades e ambições que personificam.
Em países sujeitos a tragédias como essa, essas ações criminosas são consideradas graves e as penas aplicadas aos delinquentes do oportunismo e da mentira são agravadas. A tragédia pede aqui uma providência dessas.
Essa criminalidade de dimensão política, nesta circunstância de urgência, está a indicar que é hora de rever e atualizar as leis penais aplicáveis a esses crimes. A liberalidade tem sido aqui uma brecha para a ação dos antissociais porque sem identificação com a condição humana.
Os costumes comunitários brasileiros têm no município a sua instituição. Porém, vem ele sendo instrumentalizado e esvaziado pelo oportunismo político ou pela incapacidade de compreensão de políticos do que é entre nós a grande tradição do comunal.
Dos mais de 400 municípios gaúchos atingidos, segundo o ministro de Integração e Desenvolvimento Regional, apenas 60 apresentaram plano para liberação dos recursos de socorro federal de que carecem. A legislação ambiental, violada e minimizada no governo anterior, previa medidas de urgência para eventuais situações de risco.
Em Lajeado, devastada pela enchente do rio Taquari, uma solitária Estátua da Liberdade, verde-azulada, de fibra de vidro, segurava há dias a tocha do neoliberalismo econômico no meio da água barrenta. O pedestal arruinado revelava os riscos dessa liberdade de imitação. Frágil em relação à escultura original, de cobre, de Frédéric Auguste Bartholdi, presente do povo francês ao povo americano pelo centenário da Independência. Ela celebra a “Liberdade Iluminando o Mundo”.
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