Os manuais de psicologia definem um relacionamento tóxico
como aquele em que um dos lados ofende constantemente o outro com agressões,
humilhações e por vezes violência física. Em geral, o ofensor pede perdão e
promete mudar de comportamento, mas depois o ciclo recomeça, diante de uma
vítima incapaz de reagir. Relações bilaterais não são namoro, e movimentos
diplomáticos deveriam ser guiados por estratégia e racionalidade. Mas tudo na
novela entre Brasil e Venezuela lembra
a história de uma relação abusiva.
No último capítulo, nesta quarta-feira, Nicolás Maduro
chamou seu embaixador para consultas, passo que pode ser seguido pelo
rompimento de relações, e o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela
enviou para a aprovação dos parlamentares uma moção declarando persona non
grata o assessor especial do presidente Lula, Celso
Amorim.
O chilique diplomático foi uma reação ao
veto brasileiro à entrada da Venezuela no grupo de parceiros do Brics,
bloco econômico de que também são protagonistas Rússia, China, Índia e África do Sul.
Maduro apareceu de surpresa na reunião da semana passada que
aprovaria os novos parceiros em Kazan, na Rússia, para tentar forçar sua
entrada, mas voltou para casa humilhado. Numa entrevista no evento, o
próprio Vladimir
Putin disse que era “impossível” incluir a Venezuela sem consenso, em
referência à posição do Brasil. Dias depois, Maduro acusou o governo Lula de
agressão.
Quem acompanha a relação de Lula e Maduro tem o direito de
se perguntar como foi que ela se deteriorou tão rapidamente. Desde a transição,
Lula se propôs a fazer diferente de Bolsonaro, que retirou da Venezuela o
embaixador e outros sete diplomatas por não reconhecer o governo Maduro.
O diagnóstico era que as hostilidades agravaram o isolamento
da Venezuela e tornaram o país palco de “guerra fria” opondo Estados Unidos a
Rússia e China — uma situação que só seria revertida com diálogo.
Desde então, o que não faltou foi conversa e afago. Lula
defendeu Maduro de todos os modos possíveis. Disse que a Venezuela era uma
democracia porque faz muitas eleições, afirmou que o conceito de democracia era
relativo e ainda exortou a oposição a Maduro a não “ficar chorando” por seus
candidatos terem sido sistematicamente bloqueados pelo regime.
Em maio de 2023, recebeu Maduro com tapete vermelho em Brasília e
sugeriu a inclusão da Venezuela no Brics. Em outubro, diante da desconfiança
generalizada sobre a confiabilidade das eleições que se avizinhavam, enviou
Amorim a Barbados para
negociar um acordo entre oposição e governo por eleições limpas.
O acordo foi descumprido sem a menor cerimônia. Mesmo assim,
há exatos três meses, enquanto opositores eram presos e o país mergulhava no
“banho de sangue” que Maduro prometera caso não ganhasse as eleições, Lula
passou pano:
“Estou convencido de que é um processo normal, tranquilo, o
que precisa é as pessoas que não concordam terem o direito de provar que não
concordam, e o governo tem o direito de provar que está certo”, declarou o
presidente.
Corta para a última terça-feira, quando Amorim disse
na Câmara
dos Deputados que houve “quebra de confiança” em Maduro, pois ele
prometera entregar as atas de votação da eleição presidencial e nunca entregou.
Ainda assim, recusou-se a classificar a Venezuela como ditadura, porque, embora
o governo Lula “hoje em dia” seja crítico ao regime, não é um “esporte rentável
ficar classificando os países”.
Não é novidade para ninguém que Maduro não está a fim de
conversar, e sim de mandar. Embaixadores dizem nos bastidores que Lula, que
pelo jeito se enganou a respeito de seu poder e influência, está irritado com o
ex-companheiro. Mas certamente não foram o ego ferido ou a preocupação com a
democracia as únicas razões para a guinada sobre a Venezuela em plena semana de
eleições municipais.
O problema é que, agora, Lula e Amorim terão muita
dificuldade para se desvencilhar da armadilha diplomática que eles mesmos
criaram ao bancar Maduro perante o mundo e o eleitorado brasileiro. E já está
contratado novo constrangimento para o final de 2025, a meses da eleição
presidencial de 2026, quando o Brasil sediará a próxima reunião do Brics, e
Maduro deverá tentar entrar no grupo novamente.
Enquanto isso, diplomatas e políticos ligados ao governo
tentam ver no fato de Maduro até agora não ter atacado Lula diretamente um
sinal de que ainda existe brecha para acordo. É bem assim que funcionam os
relacionamentos tóxicos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário