Eu já deveria ter esquecido as eleições nos Estados Unidos.
Torci por Kamala
Harris, perdi. Perdi eleições municipais, estaduais e federais. Uma fora do
Brasil não é nada. Se houver algo em Marte, farei minha aposta.
A energia inicial, milhões de dólares arrecadados entre
pequenos doadores, me impressionou. Pensei que a alegria da campanha e seu
olhar para o futuro bastariam. Hoje, percebo que havia uma raiva e uma
frustração que o otimismo superficial não resolve. Trump interpretou bem,
venceu.
Sempre tiro o chapéu para os vitoriosos e respeito as
decisões majoritárias. Mas esse é meu limite. Nem sempre as considero acertadas
apenas por ser majoritárias. Alemães e italianos já se equivocaram, com mais
entusiasmo.
Não consigo entender como racional uma proposta de
deportação em massa. Não só porque será difícil e mais caro substituir essa mão
de obra com americanos natos. A ideia de Trump de expulsar imigrantes e mesmo a
de Giorgia
Meloni, de confiná-los num outro país, não resolvem.
Tangidos por fome, guerras e desastres naturais, milhões
continuarão a arriscar suas vidas em busca de oportunidades. O capitalismo
garante liberdade para o fluxo de capitais e mercadorias, mas bloqueia a mão de
obra. É uma negação de suas bases econômicas. Veremos parte da humanidade
tentando escapar; outra, de certa forma, lançando-a ao mar.
Vivemos o ano mais quente da História. A temperatura media
já é de 1,5 °C mais alta que a do período pré-industrial. Por que negar tantas
evidências, sobretudo num país atingido por furacões cada vez mais fortes, do
Katrina ao Milton? Nesse contexto, o slogan drill baby, drill (perfure,
querido, perfure) — cavar para buscar petróleo entre as pedras — é uma forma
simbólica de cavar a própria sepultura.
A própria ideia de taxar importações, de se fechar, de certa
maneira, para o comércio internacional parece sedutora, supõe uma idade de ouro
da indústria americana. Mas, na verdade, pode encarecer e dificultar a vida dos
americanos. É um tipo de visão que favorece o avanço do grande competidor que é
a China. Os
chineses se prepararam com visão de longo prazo.
Darei apenas um exemplo: em 2007, eles compraram uma
montanha no Peru,
o Monte Toromocho. Ele continha 2 bilhões de toneladas de cobre. Nesta semana,
a China inaugura um porto gigantesco a 80 quilômetros de Lima. Eles se preparam
para dominar as commodities desde o início do século e agora constroem a Nova
Rota da Seda. Se abstrairmos o regime político autoritário, os chineses parecem
incluir o planeta em sua estratégia, enquanto os Estados Unidos tendem a se
fechar numa política isolacionista.
Tudo isso ainda são impressões iniciais. Teremos ainda um
longo caminho, e a imprensa americana será uma espécie de termômetro para medir
a experiência renovada de Trump. É uma imprensa que, de modo geral, também
apostou em Kamala Harris e vive sob grande pressão da direita. Ela pode ter
cometido erros, subestimado a frustração popular, mas ainda é uma indústria que
gasta parte do dinheiro apurando e confirmando a veracidade das informações.
Por mais que seja atacada, a verdade é que é explorada pelas plataformas
eletrônicas, que reproduzem seu trabalho sem remunerá-lo.
As suposições de que é possível informar sem apurar e
confirmar, de que há uma liberdade ilimitada e de que realidades paralelas têm
o mesmo valor dos fatos verificáveis servem apenas para aumentar a confusão e
turvar o debate político.
Assim como na pandemia, abre-se um período em que o papel da
imprensa americana será essencial ao lado da ciência, que se defrontará com uma
grande onda de negacionismo, das mudanças climáticas à importância das vacinas.
Em síntese, a derrota sempre nos leva à humildade de
reconhecer erros, reformular caminhos. Nem sempre os vencedores detêm outra
verdade, além da verdade de que são os vencedores.
Artigo publicado no jornal O Globo em 18/11/2024
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