Numa única tacada, deputada tirou o Brasil da
Pré-História, levando-o ao centro do século XXI
Por causa de uma conjunção astral (!) favorável, do tipo que
ocorre uma vez a cada século, o brasileiro consegue enxergar seu horizonte sem
a lente das cotas identitárias. Em duas mãos de sorte:
1) A deputada Erika Hilton,
do PSOL de
São Paulo, apresentou proposta para diminuir a carga semanal de trabalho. A
parlamentar trans legislou para toda a sociedade, e não apenas para um grupo;
2) “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, conta a história de
uma heroína brasileira. Desta vez, o audiovisual tupiniquim, contaminado às
tampas pelas guerras culturais, abandonou o viés racial e de gênero para
mostrar uma personagem humana, e não esquemática. Alguém de carne e osso. Não é
tese nem arte engajada. Cinema puro. Na narrativa, não há ninguém mal-humorado
cumprindo cota. Baita filme.
Numa única tacada, Erika tirou o Brasil da Pré-História,
levando-o ao centro do século XXI e para longe da mão dos sindicalistas e das
plataformas do fundo eleitoral. Mesmo o sempre amuado Geraldo
Alckmin arrepiou o semblante. Um ar novo cruzou o ambiente. Até então,
diante da chegada das novas tecnologias e da vizinhança da IA, os governantes
ainda não conseguiram formular qualquer política pública eficaz. Sindicalizar
não vale.
No caso brasileiro, o número de horas
trabalhadas destoa da nova sociedade digital; permanecemos na toada industrial.
De outro lado, a produtividade é baixa. Comparado ao americano, nosso
trabalhador produz o equivalente aos seus 25% — um brasileiro equivale a 1/4 de
um americano; enquanto produz um prego em 60 minutos, o outro precisa de apenas
15 minutos. (No caso de ministra petista da Saúde, a proporção é de 1/20.) É
quando o desnível educacional mostra os dentes. Nem por isso, o governo do PT
se mexeu ainda para apresentar algum plano de radical recapacitação diante do
novo cenário do trabalho. A deputada Erika, ao apresentar sua proposta, ajudou
a compreender por que o mundo contemporâneo é incompatível com o tatibitate
analógico da esquerda identitária.
Na outra mão de sorte, o diretor Walter Salles colocou nas
telas a trajetória de Eunice Paiva e o assassinato de seu marido, o ex-deputado
Rubens Paiva pela ditadura militar. “Ainda estou aqui” mostra uma família
brasileira feliz numa época infeliz da nossa História; exibe a truculência
praticada pelos golpistas de 1964 sobre a sociedade civil. Com “Pra frente,
Brasil”, de Roberto Farias, é o grande filme sobre o regime militar.
Aqui, começamos a ter um novo jeito de contar o período da
luta contra a opressão. Enfim se reconhece o papel das mulheres diante do
estado de exceção, da tortura e do medo. Fala-se sempre nas Mães de Maio,
na Argentina,
mas quis o cinema e ainda a historiografia tupiniquim exaltar preferencialmente
o papel masculino — Lamarca, Marighella etc. É um erro, porque de novo é um
olhar engajado; no mínimo, é apenas um lado coitado dos acontecimentos.
Quando pesquisava para meu livro “Primavera nos dentes”,
cuja ação se passa entre 1972 e 74, notei como as mulheres exerceram pressão
sobre os militares para não censurar o grupo Secos & Molhados. Ao
naturalizar a performance andrógina de Ney
Matogrosso, o público feminino, com as crianças, desidratou as reações
repressoras. Pela mesma época, Eunice Paiva já lutava para exigir do Estado
brasileiro o reconhecimento da morte de seu marido, sequestrado e assassinado
no Rio de Janeiro do início da década de 1970. As entrevistas de Eunice, suas
fotos ao lado de seus filhos pequenos, sua insistência em esclarecer o crime
terminaram por amedrontar as demais mulheres brasileiras — sim, porque aquilo,
o sequestro e morte, poderia acontecer a qualquer cidadão, tendo ou não
participação na política. Outro filme, “Pra frente, Brasil”, conta a tortura
sofrida por um sujeito confundido com um militante da luta armada.É baseado no
episódio verídico vivido (sem as sevícias físicas) pelo ator Reginaldo Farias e
por sua mulher.
Walter Salles colocou em destaque a luta de Eunice Paiva,
como anteriormente foi contada a história da modista Zuzu Angel em busca de seu
filho Stuart Angel, também desaparecido. Como merece ser lembrada a narrativa
sobre Clarice Herzog e o assassinato de seu marido, o jornalista Vladimir
Herzog, que emparedou a ditadura brasileira. Ou ainda a grande figura de
Therezinha Zerbini, responsável por colocar na rua milhares contra a carestia e
a fome em desafio aos militares.
Erika Hilton e Walter Salles ajudam a trazer ao Brasil uma
mão cheia de inteligência e arte.
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