domingo, 3 de novembro de 2024

À DERIVA

Dorrit Harazim, O Globo

Sociedade americana prestes a acertar contas com seus fantasmas

Difícil para Kamala tocar uma campanha convencional contra um adversário propositalmente desvairado

Onze horas da manhã em Nova York. Dias atrás, numa escola pública da Rua 56, entre a Segunda e Terceira avenidas de Manhattan, as aulas seguiam seu curso normal. Os alunos em aula nem sequer levantavam a cabeça para observar, através da porta envidraçada, as idas e vindas de estranhos em direção à quadra da esportes. Eram na maioria mulheres indo votar antecipadamente. Do portão de entrada até o local das urnas, dezenas de voluntários — novamente mulheres, na maioria — agradeciam o comparecimento de quem chegava e forneciam a absurda cédula em papel, trilíngue (inglês, espanhol, chinês), que mais parece um cardápio de vinho metido a chique. Tudo na maior calmaria, pontuado por discretos acenos de cabeça indicando esperança na sororidade pró-Kamala Harris.

Não longe dali, a livraria Barnes & Noble da Quinta Avenida expunha em espaço nobre um best-seller que fez barulho sete anos atrás: “On tyranny”, do historiador Timothy Snyder. Nele, o professor de Yale e Prêmio Hannah Arendt elenca 20 lições sobre tirania no século XX a ser aprendidas em tempos presentes. Escrito pouco depois da traumática vitória de Donald Trump à Presidência em 2016, a obra voltou a ganhar urgência e relevância. Ensinamento do primeiro capítulo desse chamamento à razão e guia de preservação de liberdades em tempos de incerteza: “Não obedeça antecipadamente”.

Faltando menos de cem horas para o fatídico acerto de contas da sociedade americana com seus fantasmas, até mesmo o venerado Jon Stewart, mais influente comediante político do país, admite estar tenso. Ele diz procurar se preservar do ritmo circadiano das redes sociais, da torrente de pesquisas de opinião e do noticiário partidário:

— É difícil escapar da compulsão neurótica de checar a milésima adivinhação eleitoral do dia.

Mais difícil ainda, senão impossível, tem sido para a democrata Kamala tocar uma campanha convencional contra um adversário propositalmente desvairado e instável. Deveria ela ignorar ou vilipendiar os insistentes elogios de Trump à genitália de um famoso campeão de golfe? Como competir com as encenações ostensivamente falsas (porém fotogênicas) do candidato republicano, que ora se fantasia de atendente de McDonald’s, ora se apresenta como motorista fake de um caminhão de lixo fake? Tudo surreal e altamente eficaz, destinado a manter em suspenso a questão-chave: o resultado da eleição será respeitado?

Quatro anos atrás, brotara da mente privilegiadamente trevosa de Steve Bannon a recomendação para que Trump declarasse vitória já na noite da eleição, independentemente da apuração e do resultado. Assim foi feito, em 6 de janeiro de 2021 a horda de trumpers tentou impedir pela força a certificação da vitória de Joe Biden, e o negacionismo da derrota perdura até hoje.

Pois bem, eis que na terça-feira passada o mesmo Steve Bannon ressurge bronzeado e desenvolto da prisão federal de Danbury, Connecticut, e convoca uma entrevista coletiva em endereço de prestígio e poder — 540 Park Avenue — para a mesma tarde. Ele havia cumprido seus quatro meses de prisão por desacato a uma convocação do Congresso, declarou-se ex-prisioneiro político e garantiu que desta vez a campanha de Trump está mais bem preparada para travar qualquer tipo de batalha. Embora não faça mais parte do círculo persuasivo de Trump — esse espaço foi ocupado de braçada por Elon Musk —, Bannon mantém o estilo rombudo, espaçoso e combativo de antes.

Coube ao analista político Bill Kristol comparar a realidade ficcional de Trump ao superestado Oceânia, criado por George Orwell em “1984”. Enquanto na imaginária edificação sem janelas havia luzes internas permanentemente acesas do repressivo “Ministério do Amor”, na vida real de 2024 Trump descreveu nos seguintes termos seu assustador comício no Madison Square Garden do domingo anterior:

— O amor naquela arena foi de tirar o fôlego. Nunca houve evento tão lindo. Foi uma festa de amor. Amor pelo país.

Na verdade, o que se viu e se ouviu por horas a fio foi um desfilar de ódio, racismo, xenofobia e fascismo. Sim, fascismo — desta vez a palavra é inescapável.

Em 1935, quando Sinclair Lewis publicou sua seminal distopia “It can’t happen here”, recebida como ficção de regime totalitário, um pedaço real do inimaginável já havia, de fato, acontecido. Foi num domingo ensolarado de fevereiro de 1931 que policiais de Los Angeles cercaram um parque público frequentado por latinos, prenderam 400 pessoas ao acaso, todos de pele escura, enquanto o mesmo se repetia em hospitais, mercados, igrejas, clubes e associações. Em pouco tempo, mais de 1,8 milhão de mexicanos foram deportados por ordem do governo de Herbert Hoover —60% deles tinham cidadania americana. Passado quase um século, Trump e seus aliados discutem abertamente a deportação em massa de 10 milhões de imigrantes.

Quando realidade e ficção se misturam, e a civilização fica à deriva, leva vantagem quem proclama certezas simples para problemas enroscados.

— Preciso dizer que me orgulho de votar em Kamala Harris, escreveu Kristol. — Tenho certeza de que, se eleita, ela me desapontará, é sempre assim. Mas pelo menos terá conseguido ficar à altura do momento.

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