Sociedade americana prestes a acertar contas com seus
fantasmas
Difícil para Kamala tocar uma campanha convencional
contra um adversário propositalmente desvairado
Onze horas da manhã em Nova York. Dias
atrás, numa escola pública da Rua 56, entre a Segunda e Terceira avenidas de
Manhattan, as aulas seguiam seu curso normal. Os alunos em aula nem sequer
levantavam a cabeça para observar, através da porta envidraçada, as idas e
vindas de estranhos em direção à quadra da esportes. Eram na maioria mulheres
indo votar antecipadamente. Do portão de entrada até o local das urnas, dezenas
de voluntários — novamente mulheres, na maioria — agradeciam o comparecimento
de quem chegava e forneciam a absurda cédula em papel, trilíngue (inglês,
espanhol, chinês), que mais parece um cardápio de vinho metido a chique. Tudo
na maior calmaria, pontuado por discretos acenos de cabeça indicando esperança
na sororidade pró-Kamala
Harris.
Não longe dali, a livraria Barnes & Noble da Quinta
Avenida expunha em espaço nobre um best-seller que fez barulho sete anos atrás:
“On tyranny”, do historiador Timothy Snyder. Nele, o professor de Yale e Prêmio
Hannah Arendt elenca 20 lições sobre tirania no século XX a ser aprendidas em
tempos presentes. Escrito pouco depois da traumática vitória de Donald Trump à
Presidência em 2016, a obra voltou a ganhar urgência e relevância. Ensinamento
do primeiro capítulo desse chamamento à razão e guia de preservação de
liberdades em tempos de incerteza: “Não obedeça antecipadamente”.
Faltando menos de cem horas para o fatídico
acerto de contas da sociedade americana com seus fantasmas, até mesmo o
venerado Jon Stewart, mais influente comediante político do país, admite estar
tenso. Ele diz procurar se preservar do ritmo circadiano das redes sociais, da
torrente de pesquisas de opinião e do noticiário partidário:
— É difícil escapar da compulsão neurótica de checar a
milésima adivinhação eleitoral do dia.
Mais difícil ainda, senão impossível, tem sido para a
democrata Kamala tocar uma campanha convencional contra um adversário
propositalmente desvairado e instável. Deveria ela ignorar ou vilipendiar os
insistentes elogios de Trump à genitália de um famoso campeão de golfe? Como
competir com as encenações ostensivamente falsas (porém fotogênicas) do
candidato republicano, que ora se fantasia de atendente de McDonald’s, ora se
apresenta como motorista fake de um caminhão de lixo fake? Tudo surreal e
altamente eficaz, destinado a manter em suspenso a questão-chave: o resultado
da eleição será respeitado?
Quatro anos atrás, brotara da mente privilegiadamente
trevosa de Steve Bannon a recomendação para que Trump declarasse vitória já na
noite da eleição, independentemente da apuração e do resultado. Assim foi
feito, em 6 de janeiro de 2021 a horda de trumpers tentou impedir
pela força a certificação da vitória de Joe Biden, e
o negacionismo da derrota perdura até hoje.
Pois bem, eis que na terça-feira passada o mesmo Steve
Bannon ressurge bronzeado e desenvolto da prisão federal de Danbury,
Connecticut, e convoca uma entrevista coletiva em endereço de prestígio e poder
— 540 Park Avenue — para a mesma tarde. Ele havia cumprido seus quatro meses de
prisão por desacato a uma convocação do Congresso, declarou-se ex-prisioneiro
político e garantiu que desta vez a campanha de Trump está mais bem preparada
para travar qualquer tipo de batalha. Embora não faça mais parte do círculo
persuasivo de Trump — esse espaço foi ocupado de braçada por Elon Musk —,
Bannon mantém o estilo rombudo, espaçoso e combativo de antes.
Coube ao analista político Bill Kristol comparar a realidade
ficcional de Trump ao superestado Oceânia, criado por George Orwell em “1984”.
Enquanto na imaginária edificação sem janelas havia luzes internas
permanentemente acesas do repressivo “Ministério do Amor”, na vida real de 2024
Trump descreveu nos seguintes termos seu assustador comício no Madison Square
Garden do domingo anterior:
— O amor naquela arena foi de tirar o fôlego. Nunca houve
evento tão lindo. Foi uma festa de amor. Amor pelo país.
Na verdade, o que se viu e se ouviu por horas a fio foi um
desfilar de ódio, racismo,
xenofobia e fascismo. Sim, fascismo — desta vez a palavra é inescapável.
Em 1935, quando Sinclair Lewis publicou sua seminal distopia
“It can’t happen here”, recebida como ficção de regime totalitário, um pedaço
real do inimaginável já havia, de fato, acontecido. Foi num domingo ensolarado
de fevereiro de 1931 que policiais de Los Angeles cercaram
um parque público frequentado por latinos, prenderam 400 pessoas ao acaso,
todos de pele escura, enquanto o mesmo se repetia em hospitais, mercados,
igrejas, clubes e associações. Em pouco tempo, mais de 1,8 milhão de mexicanos
foram deportados por ordem do governo de Herbert Hoover —60% deles tinham
cidadania americana. Passado quase um século, Trump e seus aliados discutem
abertamente a deportação em massa de 10 milhões de imigrantes.
Quando realidade e ficção se misturam, e a civilização fica
à deriva, leva vantagem quem proclama certezas simples para problemas
enroscados.
— Preciso dizer que me orgulho de votar em Kamala Harris,
escreveu Kristol. — Tenho certeza de que, se eleita, ela me desapontará, é
sempre assim. Mas pelo menos terá conseguido ficar à altura do momento.
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