Discurso de ex-presidente configura desafio existencial à
democracia americana
Na reta final, diante de uma coleção de pesquisas
assustadoras, Kamala Harris reverteu aos sombrios alertas de Biden, desistindo
da linha de reduzir Trump a uma figura "esquisita",
"bizarra", quase risível. Nasceu daí a decisão de classificá-lo como
"fascista" e, na sequência, através de terceiras vozes, a de traçar
paralelos hiperbólicos entre o comício do rival no Madison Square Garden e a
manifestação nazista, no mesmo local, em 1939, que exibiu no palco um retrato
de George Washington emoldurado por suásticas.
Erro tático, concluíram analistas independentes e mesmo
alguns estrategistas democratas. A radicalização retórica presta desserviço à
imagem de candidata "unificadora" que Harris tenta projetar e a seu
intento de persuadir eleitores indecisos. No fim, ela estaria submetendo-se às
regras do jogo de um rival que aposta na desqualificação e no insulto. Mas, de
fato, independente das conveniências da disputa por votos, seria verdadeiro o
adjetivo? Trump deve ser, objetivamente, definido como fascista?
A extensa família do nacionalismo
compartilha traços superficiais do fascismo. A Reunião Nacional francesa, de Le
Pen, e o Irmãos da Itália, de Meloni, repudiam oficialmente o fascismo mas
conservam, em gestos e palavras, fragmentos de suas raízes históricas. A
tirania imperialista, grão-russa e ultraconservadora de Putin contém pitadas de
fascismo, algo que também pode ser identificado na ditadura pós-chavista de
Maduro. Contudo, um rigor intelectual básico, que saiu da moda, proíbe
classificar como fascistas tais partidos ou regimes.
Do fascismo, Trump recolhe a xenofobia extremada e o impulso
à construção de um movimento de massas, o Maga (Make America Great Again), em
cuja periferia movem-se milícias supremacistas. Mas, na salada ideológica do
trumpismo, inexiste o conceito fascista nuclear do Estado corporativo. Além
disso, ao longo do mandato original do ex-presidente, as liberdades públicas e
políticas seguiram intactas.
Foi John Kelly, general da reserva e ex-chefe de gabinete
de Trump,
quem colocou o adjetivo na roda, propiciando o avanço retórico da candidata
democrata. "O ex-presidente situa-se no campo da extrema direita, é um
autoritário e admira ditadores. Assim, com certeza, ele encaixa-se na definição
geral de fascista." A "definição geral" invocada por Kelly
abrange incontáveis tiranetes e, sobretudo, ignora as singularidades do
fascismo.
O ponto crucial da entrevista de Kelly encontra-se em outro
lugar: a menção a um diálogo no qual o então presidente louvava a fidelidade
inabalável dos generais de Hitler. O
relevante, aí, não é o nome Hitler, mas a palavra fidelidade. O chefe do Maga
ressente-se das resistências dos seus antigos auxiliares militares em cumprir
suas ordens impulsivas e, ainda, dos inquéritos instalados contra ele por
promotores judiciais. Como lulistas e bolsonaristas, Trump enxerga nas agências
públicas autônomas um "Estado profundo" engajado na sabotagem da
vontade soberana do Líder eleito.
Trump promete, num segundo mandato, varrer o "Estado
profundo". A alta burocracia estatal seria submetida a expurgos
purificadores e colonizada por figuras tão leais quanto os generais de Hitler.
Não é fascismo, mas configura um desafio existencial à democracia americana.
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