Sua receita básica foi isolar candidatos percebidos como
extremos e juntar várias forças, por vezes opostas entre si, em torno de um
nome
Mais do que um partido ou uma ideologia, o vencedor da
eleição de 2024 foi um estilo de se fazer política. Foi principalmente a
vitória de um modelo capaz de construir uma geometria variável de alianças em
relação à grande diversidade política brasileira. Sua receita básica foi isolar
candidatos percebidos como extremos e juntar várias forças, por vezes opostas
entre si, em torno de um nome.
Parece simples, mas fazer isso em larga escala, num país
bastante heterogêneo e que sofre há alguns anos dos males da polarização
nacional, não é tarefa trivial. Lideranças importantes usaram essa fórmula, mas
o estrategista que mais a utilizou foi Gilberto Kassab, um mago da política
brasileira.
As lições do pleito municipal devem servir para pensar a
política brasileira nos próximos dois anos. Por falta de um cálculo mais
centrista, o bolsonarismo desperdiçou o crescimento que teve em importantes
cidades do país porque preferiu marcar uma posição hegemonista e brigar com
possíveis parceiros. Assim foi em Goiânia, Curitiba, Belo Horizonte e Manaus,
para ficar em alguns casos paradigmáticos.
Mas a consequência maior não foi a perda da
eleição. O problema foi ter gerado uma imagem, especialmente por conta das
ações beligerantes de Jair Bolsonaro, de parceiro não confiável. Essa conta
poderá ser paga lá na frente.
A falta de compreensão do cenário político também afetou o
PT. É bem verdade que o petismo não acirrou brigas desnecessárias tanto quanto
o bolsonarismo. Entretanto, mesmo tendo entrado em frentes amplas
bem-sucedidas, como no Recife ou no Rio, o petismo tem tido dificuldades de
arranjar aliados mais ao centro para concorrer a eleições locais.
Nas eleições de 2016 e 2020 isso era mais compreensível,
porque a Lava-Jato na primeira e a necessidade de defender Lula na segunda (o
que foi importante para sua ressurreição política) tornavam muito complicado um
jogo conjunto com forças políticas diferentes.
Hoje, depois de ter ganho a Presidência da República em nome
de uma frente ampla, o problema está na incapacidade estratégica de o partido
conquistar parceiros para novamente crescer no âmbito local.
O insucesso da estratégia mais exclusivista já foi percebido
pelos dois principais partidos do país, mas o presidente Lula entendeu mais
esse processo, por ora, do que Bolsonaro. Claro que isso tem muito a ver com a
necessidade de o lulismo governar bem os próximos dois anos e, assim, ter
maiores chances de obter a reeleição. Há ainda resistências internas ao PT em
adotar um alargamento de apoios políticos e sociais, contudo, são favas
contadas que isso acontecerá, provavelmente com um primeiro grande impacto numa
reforma ministerial em 2025.
No caso do bolsonarismo, há um entrave de ir mais para o
centro em relação às suas posições: Bolsonaro não quer perder a exclusividade
da liderança de ampla camada da direita e da extrema direita, e a ampliação das
conversas e alianças poderá abrir espaços para outros políticos.
Se Bolsonaro permanecer inelegível, o que é o mais provável,
ele teme perder o controle de sua sucessão política. Por isso, ele apostou em
2024, e poderá fazê-lo em 2026, numa estratégia mais sectária e hegemonista,
sonhando com a manutenção de sua candidatura presidencial até as vésperas da
eleição - como Lula fez em 2018 -, evitando que algum político tome o seu
lugar.
Mesmo que Lula encontre dificuldades para alargar seu arco
de alianças e Bolsonaro queira evitar uma grande aliança em seu campo político
que não seja em torno de si, a maioria dos partidos já percebeu que a
estratégia geométrica de Kassab pode ser, de uma maneira ou de outra, um
instrumento de fortalecimento de suas posições.
E vale frisar que o centrismo do cálculo político kassabista
não significa, necessariamente, privilegiar legendas que se identifiquem
ideologicamente como de centro. O modelo aqui diz respeito à construção de
linhas entre grupos políticos diferentes, de modo a isolar os extremos e
aumentar o poder de barganha de cada qual.
Se a teoria kassabista funcionar, qualquer um dos polos
hegemônicos em 2022 precisará ter mais apoio e dividir mais poder político se
quiser ganhar em 2026 e ter, ao mesmo tempo, um cenário de governabilidade
minimamente razoável.
Algumas lideranças regionais seguiram esse caminho em 2024,
e outras foram incapazes de criar ímãs aglutinadores. Entre os bem-sucedidos,
destacam-se políticos como Hélder Barbalho, João Campos, Eduardo Paes e, com
grande sucesso numérico embora com uma apoteose fracassada, Tarcísio de
Freitas.
É inegável que o governo Tarcísio teve um crescimento
eleitoral expressivo em seu estado, com um domínio de prefeituras maior do que
os tucanos tiveram em seu auge. O porém ao seu desempenho relaciona-se com o
final da campanha na cidade de São Paulo, onde já era evidente a vitória de seu
aliado, Ricardo Nunes. Em vez de ter uma postura magnânima, Tarcísio criou uma
fake news gravíssima no dia da votação, buscando criar um elo entre o PCC e o
candidato Guilherme Boulos.
O governador paulista obviamente cometeu um crime eleitoral
numa ação com fortes consequências negativas sobre a democracia, mas é provável
que não seja punido porque o TSE já terá que segurar a legitimidade da
inelegibilidade de Bolsonaro e, provavelmente, Pablo Marçal. Mais um da direita
neste grupo seria agir como o personagem de Machado de Assis, Simão Bacamarte,
que mandou colocar todo mundo no hospício. Até o poder que tem a prerrogativa
de seu “último a errar” pode ter de levar em conta seus limites políticos.
Compare essa situação com a imagem da vitória de Eduardo
Paes no Rio de Janeiro. Nela, o prefeito reeleito conseguiu colocar numa mesma
foto a deputada Jandira Feghali, do PCdoB, com Otoni de Paula, um importante
parlamentar conservador da bancada evangélica. Paes isolou seu adversário
bolsonarista, criou uma aliança do tamanho de um transatlântico, tudo com uma
postura democrática alargada. Se o mago Kassab estiver certo, o novo prefeito
carioca deu um banho de estratégia em Tarcísio de Freitas.
O modelo político centrista de Kassab, pensado como uma
geometria de junção de vários grupos, já não é mais o caminho cômodo de sua
famosa frase, que definia seu partido como sendo nem de direita, de esquerda ou
de centro. Essa postura o ajudou a estar em quase todos os governos nos últimos
15 anos. Só que isso se dava mais pela via da acomodação fisiológica, e não por
um projeto de expansão de poder.
Agora, Kassab tem uma nova estratégia: levando em conta a
grande diversidade política do país, ele quer utilizar o PSD como instrumento
para construir alianças variadas com grupos que lhe permitam ter maior poder de
influência nas eleições para governadorias e o Congresso Nacional,
especialmente o Senado, em 2026. Se alcançar esse objetivo, surgirá uma nova
configuração política que poderá ser decisiva na governabilidade do próximo
mandato presidencial e, sobretudo, nas eleições de 2030.
A capacidade de atuar como o mestre dos magos da política
brasileira não significa que a estratégia de Kassab seja perfeita e imune a
barreiras. Há quatro limites ao seu projeto de poder maior, mirando as eleições
gerais de 2026.
Em primeiro lugar, o conflito com o bolsonarismo tende só a
aumentar nos próximos dois anos. De fato, Bolsonaro está numa posição judicial
complicada, com grandes chances de não concorrer ao próximo pleito
presidencial. No entanto, ele e seus aliados mais extremistas são muito bons na
tática de destruição de inimigos - embora sejam péssimos na construção de
qualquer coisa que vá além de seu grupo sectário. A lógica centrista do
kassabismo não deve negligenciar a força do bolsonarismo na sociedade.
Em segundo lugar, a junção de todas as forças do próprio PSD
no plano nacional não será uma tarefa fácil em 2026. Os setores mais lulistas,
que não são poucos nem desimportantes, vão querer apoiar a reeleição ou então
que o partido tenha uma postura contrária a possíveis candidatos presidenciais
mais à direita. Outra parcela da legenda, inversamente, não vai seguir com o
lulismo e estará mais próxima de forças direitistas. Como conciliar essas duas
posições?
Haverá ainda, em terceiro lugar, maior dificuldade de junção
do PSD com outras forças do centro para a direita. Kassab não terá a mesma
liberdade de negociação que teve nas eleições municipais porque as disputas por
postos legislativos federais e pelas governadorias gerarão mais cobiça e um
número maior de pretendentes a tais cargos.
Para além da questão de estratégia eleitoral, por fim, o
centrismo de Kassab avança pouco. Isto é, trata-se de um modelo que propõe uma
geometria de alianças políticas bastante sagaz sem apresentar nenhuma agenda de
políticas públicas para enfrentar os enormes desafios do Brasil. Dizer que é
favor da liberdade econômica e de um Estado eficiente é tão genérico como a
esquerda falar que é a favor do combate às desigualdades sociais.
Fazer política, em última análise, é escolher os temas e
propostas concretas que devem ser levadas adiante, buscando apoios e
enfrentando resistências. Se é um mago na arte de fazer política, Kassab ainda
não definiu como quebrar os ovos e fazer a omelete capaz de levar à mudança e
modernização do Brasil.
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