De repente, o presidente eleito dos EUA está sendo
cortejado como cabo eleitoral em terra alheia
É rica e reveladora a entrevista de Jair Bolsonaro a Camila
Mattoso e Ranier Bragon, da “Folha de S. Paulo”, sobre a eleição de Donald
Trump à presidência dos EUA. Suas respostas indicam que a fala é sobre ele e
não sobre Trump. Nela, este aparece mais como um ajudante de ordens do
brasileiro na obra de transformação do mundo num mundo de direita.
A figura de Bolsonaro tem sido enigmática. Figura de
manipulação de subentendidos, nunca fica claro quem ele realmente é. Não se
assumiu como presidente de uma república democrática, constituída por três
poderes independentes entre si. A república de Bolsonaro é singular, de um
poder só.
Fica claro que o mundo de Bolsonaro é hierárquico, definido
por concepções de quartel. Para ele, Trump não é apenas o homem mais poderoso
do mundo. Mas o é de um poder duplicado pelo fato de que terá por quatro anos a
responsabilidade de tomar decisões sobre o país mais rico do mundo, com o
arsenal mais poderoso do mundo, mas também porque ele é pessoalmente senhor de
imensa riqueza.
A compreensão que Bolsonaro tem dessas
imensidões é equivocada e simplória. O mundo dessas imensidões está cheio de
histórias de perdição, de perda de fortunas e da perda de poder.
Ele parece não saber que, para decisivos grupos religiosos,
nos EUA e no Brasil, mais poderoso que o mais poderoso dos homens é Deus.
Faltou-lhe esse esclarecimento na fala agitada e ansiosa.
O jornalista da GloboNews Gerson Camarotti, quando
entrevistou o papa Francisco, numa entrevista descontraída e bem-humorada,
disse-lhe que um papa argentino deixava muitos brasileiros incomodados. Afinal,
a Argentina tinha nomes de grande destaque internacional em diferentes âmbitos,
como Messi, no futebol. E, agora, Bergoglio. O papa aquiesceu, mas que os
brasileiros não se preocupassem. É verdade, o papa era argentino, mas Deus é
brasileiro (coisa que Bolsonaro não sabe).
Na entrevista da “Folha”, Bolsonaro não só manifesta uma
admiração subalterna por Trump. E alerta: “Ele gosta de mim. (...) Ele me tem
como uma pessoa de que ele gosta. É como você se apaixonar por alguém de graça,
né? Essa paixão vem da forma como eu tratava ele, sabendo o meu lugar. (...)
Acredito que o Trump gostaria que [eu] fosse elegível. (...) Eu sei o meu lugar
perto dele. Eu estou para ele como o Paraguai está para o Brasil.”
De um ponto de vista diplomático, a fala é imprópria e o é
também na boca de quem está impedido de ser candidato à presidência em 2026,
que fala como se o país já não tivesse outro presidente da república, eleito
legalmente. Esquece-se de que abandonou a presidência e o país antes de
terminá-la. Por não tê-la passada ao sucessor, parece pensar que nela continua.
A Constituição e o Judiciário o substituíram no rito de seu descarte.
Ele pretende comparecer à posse de Trump como representante
do Brasil. Lembra que Trump gosta também de um de seus filhos, a quem convidara
para estar a seu lado no momento do anúncio de sua vitória. O que torna Trump
suspeito de compartilhar a mesma concepção equivocada do que é o Estado e do
que é o chefe de Estado.
Bolsonaro conta com essa cumplicidade: “Se o Trump me
convidar, vou peticionar ao TSE, ao STF. Agora, com todo o respeito, o homem
mais forte do mundo... Você acha que ele vai convidar o Lula? Talvez
protocolarmente. Quem vai convidar do Brasil? Talvez só eu. Ele vai falar não
para o cara mais poderoso do mundo? Eu sou ex. O cara vai arranjar encrenca por
causa do ex? Acha que vou para os Estado Unidos e vou ficar lá?”.
A desordem de suas ideias é imensa. O ministro do STF
Alexandre de Moraes não terá como desrespeitar uma decisão do homem mais
poderoso do mundo, pensa subalternamente Bolsonaro, como se o Brasil fosse um
Estado associado dos EUA, um Porto Rico dos trópicos.
Na entrevista à “Folha”, Bolsonaro se curva demais a Trump e
ao que ele supostamente representa. Lá, também, Trump se curva à Constituição
de seu país e não a Bolsonaro e seu filho. Quem está se curvando a quem?
Estamos em face de um estranho cenário de bajulação e de
bajuladores. Na Câmara dos Deputados, um deputado bolsonarista do Rio de
Janeiro propôs a concessão a Trump da Medalha do Mérito Legislativo. A Câmara
diz que ela é concedida a “personalidades que prestaram serviços relevantes ao
Poder Legislativo ou ao Brasil, com a realização de ‘algum trabalho que teve
repercussão e recebeu a admiração do povo brasileiro’”. Quando?
Em entrevista à BBC News, Bolsonaro esclarece o que
pretende: “Talvez em breve Deus também nos conceda a chance de concluir nossa
missão com dignidade e nos devolva tudo o que foi tirado de nós”. De repente,
Trump está sendo cortejado como cabo eleitoral em terra alheia.
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