Dos principais e mais complexos problemas brasileiros, dois são centrais e não têm ainda uma governança mínima para seu tratamento: a segurança pública e a mudança climática. Em outras questões fundamentais, como a saúde, a educação e o combate à desigualdade social, certamente há muitas tarefas a realizar. Porém, tais setores já construíram políticas governamentais com avanços importantes e, sobretudo, sistemas básicos que os organizam. Em todos esses casos, as soluções passam inexoravelmente pela estrutura federativa. Se o país quiser lidar melhor com os desafios do século XXI, seus líderes terão de entender para que serve uma federação.
Os debates recentes sobre mudança climática e segurança
pública revelam que muitas lideranças com postos elevados na República
brasileira não compreenderam ainda o significado do federalismo. A palavra
federação vem do latim “foedus”, cujo significado etimológico é pacto. Foi com
essa ideia que no final do século XVIII os federalistas americanos criaram um
novo experimento político que buscava garantir a autonomia e as liberdades
locais e, ao mesmo tempo, construir uma nação governada por uma interdependência
equilibrada entre as partes territoriais.
Os pactos que organizam as federações pelo
mundo são distintos conforme a situação territorial e a trajetória histórica
desses países. Há federalismos mais descentralizados na distribuição do poder,
e outros com perfil mais centralizado. Mas há algo em comum: cada vez mais é
necessário garantir a articulação e a integração intergovernamentais para
enfrentar problemas que não podem ser solucionados por apenas um ente
federativo, seja a União, os estados ou os governos locais.
O caso brasileiro tem uma trajetória político-territorial
bastante atribulada, contendo um duplo legado negativo. De um lado, um viés
centralizador muito forte, presente desde o Império, mas cujas expressões mais
fortes vieram do longo período de Vargas até o final do regime militar. De
outro, uma tradição localista e fragmentadora que perpassa toda a história. Já
avançamos em relação a essa herança, mas os fantasmas do presidencialismo
imperial e do coronelismo isolacionista continuam rondando nossos líderes
políticos.
O modelo federativo inaugurado pela Constituição de 1988
gerou uma série de pactos territoriais em torno de problemas ou políticas
públicas, todos construídos com participação dos entes federativos. Óbvio que
havia, em maior ou menor grau, alguma assimetria, dado o maior poder do governo
federal e a grande dispersão de governos locais, a maioria com baixas
capacidades estatais.
Mesmo assim, foi montado um federalismo cooperativo que deu
base ao SUS, um paradigma universalista de política de saúde num país
extremamente desigual. Sua trajetória contém muitos sucessos, o maior deles a
salvação do Brasil frente à sandice bolsonarista. Também dessa concepção
federativa vieram êxitos na educação e no combate à desigualdade social, como
se pode perceber comparando a grande maioria dos dados da situação brasileira
na década de 1980 com os indicadores atuais. As questões que permanecem com
pouca resolutividade são exatamente políticas cuja governança tem sido incapaz
de lidar com a federação.
A segurança pública é um cipoal de políticas dispersas e
descoordenadas ao longo do território nacional. Fragmentação é o nome do jogo
federativo que impera neste setor. Fenômeno que já começa com a divisão das
duas polícias no plano estadual, que vai ficar ainda mais desorganizado com o
crescimento das guardas municipais e, como corolário, estrutura-se num terreno
sem interligação com as forças policiais federais.
Em poucas palavras, a segurança pública é uma verdadeira
Babel, cujo maior perdedor é o cidadão, principalmente a camada mais pobre -
com destaque para o morticínio da população negra das áreas periféricas. Mas
mesmo tendo um derrotado maior na estrutura social, todos os brasileiros estão
apanhando nesta partida: a classe média que não pode andar mais com seu celular
nas ruas das grandes cidades, as atividades econômicas que temem o roubo de
cargas, a destruição das políticas de proteção ambiental na Amazônia pelo crime
organizado, enfim, uma insegurança crescente que inviabiliza o futuro do país.
E quem é o vencedor neste jogo fragmentado, desorganizado e
descoordenado territorialmente da segurança pública? O crime organizado está no
topo dos vitoriosos, poder que cresce nacionalmente cada vez mais, com sua
infiltração nas estruturas estatais e diversificação de atividades econômicas.
Mas também ganham pontos de legitimidade os representantes do discurso do tiro,
porrada e bomba que elegem cada vez mais parlamentares nos legislativos,
apresentando como solução a morte e o aprisionamento da ralé do crime, o que
por tabela mata milhares de inocentes pobres e pretos. A única coisa que não
querem é que o sistema se estruture organizacionalmente e no plano federativo,
porque suas carreiras políticas dependem da manutenção da Babel da política
pública, porque assim podem apresentar soluções fáceis, simples e... erradas,
como bem comprovam os indicadores nos últimos anos.
A questão ambiental teve importantes avanços desde a
redemocratização. Legislações mais modernas e políticas públicas específicas
melhoram a situação do Brasil em vários aspectos relativos à sustentabilidade.
Claro que houve resistências de grupos cujo modelo de atuação econômica era
arcaico, mas também houve negociações e ganhos incrementais. Ressalte-se ainda
que há várias temáticas ambientais, e algumas delas avançaram mais e outras,
bem menos. E, por fim, mesmo com vitórias importantes, não se conseguiu
construir um sistema federativo que ampliasse a escala das ações e reduzisse a
desigualdade na capacidade de os governos tratarem do tema em todo o território
brasileiro.
Mas a urgência do tema ambiental ampliou-se vertiginosamente
por conta da mudança climática. Trata-se de uma questão relevante na agenda
mundial, com mais ênfase desde o Acordo de Paris, em 2015. Mais gente, grupos
sociais e nações constataram que o relógio do desastre tinha se acelerado. A
percepção da relevância da questão, entretanto, causou muito menos mudanças do
que as necessárias, e os últimos anos vêm sendo marcados pela aceleração do
aquecimento global e da ocorrência de eventos climáticos extremos.
O Brasil está no centro da questão climática porque é origem
e grande receptáculo de suas nefastas consequências. Se suas políticas públicas
para essa área fracassarem, o mundo inteiro sofrerá e o território brasileiro
terá impactos negativos ainda maiores. Mesmo com os avanços ambientais citados
anteriormente, não havia um modelo sistêmico para lidar com a mudança climática
e a situação ficou ainda mais grave com o negacionismo e os crimes
lesa-humanidade cometidos por Bolsonaro. Mas Trump vem aí para mostrar que o
bolsonarismo era uma brisa perto dos furacões que poderão ser causados pelo
isolacionismo americano.
A solução da moda, por vezes até messiânica, é criar uma
Autoridade Climática. O posto pode ser um importante avanço, contudo será
bastante limitado caso não seja criada uma governança colaborativa no plano do
federalismo climático. De Brasília, mesmo com muitos recursos e uma boa
burocracia, não se resolve a maior parte dos conflitos e dilemas amazônicos de
preservação. A adaptação e a mitigação climática em todo o território nacional
vão depender do fortalecimento das capacidades estatais de estados e municípios,
além da necessidade de convencê-los a atuar cooperativamente entre si e junto
com o governo federal.
O federalismo brasileiro e, por conseguinte, as principais
políticas públicas caminham para o desastre se a Federação for lida como um
conjunto de ilhas. A “ilha” da União muitas vezes quer resolver os problemas de
forma meramente centralizada, e quando fica “boazinha” fala em relações
interfederativas - um pleonasmo, porque federativo já significa pacto, acordo e
articulação. E as “ilhas” dos estados e municípios muitas vezes fazem o jogo de
empurra para o governo federal, querendo manter o poder decisório último,
receber os recursos e repassar as responsabilidades. A famosa reunião do
presidente Lula mostrou alguns governadores com vocação para comandar ilhas,
mas não um país - e queimadas e crime organizado são problemas, no mínimo,
nacionais.
O Brasil precisa urgentemente da institucionalização e
fortalecimento do SUSP na segurança pública, bem como da criação de um sistema
nacional com articulação intergovernamental na política de mudança climática.
Sem integração federativa, o crime organizado vai crescer cada vez mais e os
desastres climáticos vão se ampliar. Para alcançar essa nova governança
colaborativa, é preciso instituir em ambas as políticas fóruns federativos nos
quais a União, os estados e os municípios possam dialogar, negociar, decidir,
atuar conjuntamente e planejar ações de longo prazo.
Os sistemas federativos de segurança e da política climática
vão se ancorar na articulação e nas arenas intergovernamentais, que serão a
garantia da autonomia de cada ente federativo, mas também o instrumento para
construir uma nação melhor. Entender a relevância da Federação é compreender
que somente pactos territoriais garantirão um futuro melhor ao Brasil.
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