Resiliência democrática se revela nas respostas das
instituições, mas também opera por dissuasão e pelas características
constitucionais do sistema político
Em 2022, um homem partiu da Califórnia para Washington, DC, com o
propósito de assassinar Brett Kavanaugh, ministro da Suprema Corte americana.
Estava indignado com o voto da Corte sobre o aborto. Chegando à residência do
juiz, enviou mensagem de despedida para a irmã. Fala do suicídio que cometeria
após o ato. A irmã logrou dissuadi-lo e o instigou a ligar para o 911, o que
permitiu sua captura.
Quem ou o que estava em risco neste episódio? Certamente o juiz cuja vida
esteve por um fio. Mas a democracia americana não estava em risco; conclusão
que não se alteraria caso o plano tivesse tido êxito. Tratava-se de uma ação
isolada, mas com inequívoco conteúdo político-partidário: "eu poderia pelo
menos pegar um deles, o que iria mudar os votos por mais de uma década, e eu
vou atirar em três. Todas as principais decisões nos últimos dez anos têm sido
partidárias, então se tiver mais liberais que conservadores eles terão o
poder".
O quase atentado é produto da polarização
política recente naquele país? As evidências sugerem que a polarização
incentiva comportamentos não democráticos, mas não necessariamente violência.
Há semelhanças entre este caso e o de Tiu França. Mesmo se a ação não fosse individual —e envolvesse um bando de
lunáticos— a conclusão seria a mesma: são atentados e não ameaças à democracia.
A conspiração para um golpe de Estado, no entanto, faz parte de outra classe de
ações.
As ameaças à democracia podem ser observáveis ou não, ou seja, apenas
conhecidas posteriormente, como com o plano golpista. No primeiro caso, elas podem
deflagrar respostas concomitantes, das instituições e da sociedade. Mas podem
ser meramente retóricas, sem medidas concretas. Caso estas existam, as
respostas tomam a forma de ações pelo Legislativo, Judiciário e sociedade. Aqui
a resiliência da democracia é visível e mensurável. Mas ela também se manifesta
por dissuasão: a percepção da robustez das instituições e também suas
disfuncionalidades (ex. fragmentação partidária obstaculizando mudanças
radicais) tem efeito inibidor.
É cedo para qualquer conclusão, mas o malogro do plano tem ancoragem
institucional. É o que sugere a troca de mensagens entre o general Mario Fernandes e seu chefe de gabinete:
"Cinco (generais) não querem, três querem muito e os outros, zona de
conforto. É isso. Infelizmente". "Tem o dissidente, tem os filha da
p... lá, tem, já tá comprovado. Mas nós sabemos que é um colegiado".
"Quatro linhas da Constituição é o cacete! Nós estamos em guerra". Os
golpistas eram francamente minoritários, o que não deveria causar surpresa.
A conclusão do ministro da Defesa do governo Lula captura parte da
dinâmica em jogo: "não houve golpe porque as Forças Armadas foram leais à Constituição". Por
que a maioria dos generais disse não? Aqui se combinam fatores individuais
(sobre os quais nunca poderemos ter certezas) e instituições, como discuti aqui na coluna. Mas é fundamentalmente a
complexidade institucional que faz o plano ser percebido como aventura
indesejável. Estas conclusões não se alteram mesmo se o plano não tivesse sido
abortado. Como no caso de Kavanaugh, o risco a muitos indivíduos era alto; mas
à democracia foi baixo.
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