Golpe em 1964 envolvia governadores dos três Estados mais
importantes do Brasil à época, amplos setores do Congresso, nata do
empresariado, Igreja Católica e movimentos sociais enraizados na classe média
O ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro,
tenente coronel Mauro Cid, afirmou que, em 1964, para dar um golpe,
os militares não precisaram assinar nada. É o que consta no relatório da
Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado, enviado, quarta-feira
(26), para a Procuradoria Geral da República.
"Em 1964 não precisou ninguém assinar nada",
escreveu no WhatsApp, em conversa com outro golpista, o tenente
coronel Sérgio Cavaliere. Os dois lamentavam a falta de apoio dentro
da cúpula do Exército para endossar o decreto que formalizaria a
ruptura institucional.
A evocação histórica golpista é incorreta em diversos
níveis. Em 1964, os militares que deram um golpe assinaram um monte de papéis e
procuraram, de diversas maneiras, revestir o golpe de legitimidade. Conforme a
historiografia já estabeleceu, essa era uma condicionante para a destituição do
então presidente João Goulart ter o reconhecimento dos Estados
Unidos, fundamental para que o golpismo fosse adiante.
De início, é importante lembrar que não
estavam sozinhos. A conspiração para derrubar o governo envolvia
os governadores dos três Estados mais importantes do Brasil à época (Minas
Gerais, São Paulo e Guanabara), de amplos setores do Congresso, a
começar do presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, da nata do
empresariado, da cúpula da Igreja Católica e de movimentos sociais
enraizados na classe média.
Os conspiradores colocaram multidões nas ruas em uma escala
superior à do bolsonarismo pós-eleições. O clamor popular fabricado pelos
conspiradores de 60 anos atrás estava a mil por hora. Foi, em grande medida, um
golpe cívico-militar.
Tudo se repetiu entre novembro e dezembro de 2022 na forma
de paródia ou farsa. Os bolsonaristas colocaram multidões impressionantes nas
ruas antes e depois deste período, mas não nessa época. Os manifestantes que
cantaram o hino nacional para um pneu eram um grupo pequeno, que cortaram uma
BR no interior do Paraná. Uma tática bastante conhecida de militantes
radicalizados que estão em pequeno número é a de interromper o trânsito, em
diversos locais, de forma a chamar a atenção e gerar um transtorno de dimensões
desproporcionalmente grandes.
Na Argentina, esta modalidade de manifestantes ganhou o nome
de "piqueteros", e eles eram capazes de parar o País a cada
quinze dias. Despertavam medo, provocavam tumulto, em escala disseminada, mas
não se tratavam de movimentos massivos.
Movimento massivo foi o que houve no Brasil em junho de
2013. As concentrações bolsonaristas, inclusive às de portas de quartéis,
compensavam o pouco número com violência potencial cada vez maior. No 8 de
janeiro de 2023, o total de manifestantes que depredaram a Praça dos Três
Poderes não chegava a 5 mil pessoas. Assim como o clamor popular de 2022
foi um simulacro, e os conspiradores bolsonaristas sabiam disso, a extensão da
rede golpista fora dos quartéis era quase uma caricatura de 1964. Há
um padre de Osasco envolvido.
Em 1964, o governador de Minas Gerais, Magalhães
Pinto, nomeou dias antes do golpe um secretariado pronto para pedir o
reconhecimento internacional do estado de beligerância no país, passo
necessário para justificar o recebimento de apoio material dos Estados Unidos à
insurreição, para a qual já havia uma esquadra a caminho do Atlântico Sul,
conforme foi revelado pelo jornalista Marcos Sá Corrêa nos anos 70,
com base em documentos oficiais do governo americano. A articulação golpista
atual envolvia um blogueiro argentino, Fernando Cerimedo.
O golpe de 1964, em que pese seu início caótico, em que um
grupo de militares procurou suplantar em protagonismo outro, foi formalizado
rapidamente por uma declaração de vacância da Presidência feita pelo presidente
do Senado, na madrugada de 2 de abril. Naquela mesma madrugada, o presidente da
Câmara dos Deputados foi empossado provisoriamente na presidência da República
apenas para compor uma foto, já que o poder real estava na sede do
Ministério do Exército, no Rio. É verdade que o documento que formalizou a
ditadura, o Ato Institucional número 1, só foi assinado em 9 de abril, uma
semana depois. Mas houve a preocupação de se obedecer a alguns ritos.
No caso de 2022, não existia, até onde se sabe, nenhum
parlamentar no exercício do mandato envolvido. A quartelada planejada pelo
grupo de militares indiciados cogitava a prisão do presidente do Senado, o
assassinato do presidente e do vice eleitos e o do presidente do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), em uma Noite de São Bartolomeu que
nunca esteve nas cogitações do principal grupo conspirador de 1964. Mas a sanha
homicida em um planejamento de golpe de Estado não é inédita no Brasil.
Algo parecido, mas bem mais grave, ocorreu em 1938, quando
um grupo de militares integralistas atacou o Palácio Guanabara para
tentar matar o então presidente Getúlio Vargas e sua família. A
guarda presidencial resistiu até receber o socorro do Exército, que demorou
bastante. Os golpistas foram fuzilados nos fundos do Palácio, sumariamente, sem
investigação e muito menos julgamento.
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