Dizer que o golpismo foi extirpado do ecossistema militar
seria não só precipitado, mas um erro grave
Muito já se sabia dos fatos finalmente reunidos nas 884
páginas do relatório final da Polícia Federal sobre o inquérito aberto para
investigar uma tentativa de golpe ainda na vigência do governo Jair Bolsonaro.
Mas a consolidação das informações a respeito da abrangência da conspiração não
deixa dúvida: o grau de corrosão institucional que permite que tantos níveis
hierárquicos sejam mobilizados para consolidar um plano para abolir o Estado
Democrático de Direito não se corrige em dois anos, e seus danos são
prolongados.
Será necessário, além de julgar com presteza e sentido de
urgência e de punir com o rigor da lei aqueles que atuaram na trama golpista,
atuar para descontaminar permanentemente esses órgãos de Estado, sobretudo as
Forças Armadas e, dentro delas, o Exército Brasileiro dos muitos desvios
comprovados pelo inquérito.
Alguns desses vícios não são novos, mas foram ressuscitados
por Bolsonaro de forma sistemática e bem anterior a sua própria eleição. Tudo
começou com a atuação do ex-capitão — patente, aliás, que só obteve como
espécie de prêmio de consolação incompreensível depois de seu afastamento do
Exército justamente por tentar promover uma sublevação — como uma espécie de
líder sindical das famílias militares no tempo em que foi deputado do baixo
clero.
Isso fez com que o desprezo que havia em
relação a Bolsonaro nas hostes militares desse lugar a alguma condescendência.
Aquele parlamentar radical e, para alguns, folclórico se tornou útil para
defender os interesses corporativos dos fardados. Foi a partir dessa pequena
fresta que ele foi retomando acesso aos militares mais graduados para, pegando
carona em episódios como o mensalão e a Lava-Jato, convencer generais (primeiro
os da reserva) e também as tropas de que seria alternativa à corrupção, hábil e
sistematicamente associada ao PT e a Lula.
Os ecos dessa pregação, que teve forte impacto nas redes
sociais, sobretudo, na origem, nos grupos do Facebook, aparecem nas conversas,
nas trocas de mensagem e na forma de articulação dos golpistas de 2022,
sobretudo na ala mais radicalizada deles, formada pelos integrantes das forças
especiais, conhecidos como “kids pretos”.
Esse tipo de lavagem cerebral, que ninguém se engane, não
foi estancado com a troca da guarda no poder nem com as investigações do 8 de
Janeiro e do golpismo pré-posse de Lula. Continua acontecendo, de forma talvez
mais sub-reptícia, nos aplicativos de trocas de mensagens, em redes sociais
como o X e nas conversas de caserna.
A própria conclusão do inquérito, apontando e prendendo
integrantes do Exército de diferentes patentes, é munição para o discurso de
que o Supremo Tribunal Federal e o governo Lula promovem uma caça às bruxas aos
militares, com execração e humilhação públicas. A prisão de um general tem
forte impacto no etos militar.
O estilo conciliador do ministro da Defesa, José Mucio, não
é unanimidade no entorno de Lula e no coração do PT. Estes gostariam que ao 8
de Janeiro já tivesse se seguido uma ação mais contundente para investigar,
punir e afastar os envolvidos nos atos daquele dia e nas maquinações que o
antecederam.
No entanto não há dúvida de que foi graças à capacidade de
agir como um algodão entre coturnos de Mucio que não se seguiu uma crise maior
com quartéis, à época ainda tomados pelo discurso de que as eleições vencidas
por Lula haviam sido fraudadas. Passados dois anos, os sinais desse
inconformismo são menos nítidos, mas dizer que o golpismo foi extirpado do
ecossistema militar seria não só precipitado, mas um erro grave, que pode levar
episódios similares a ocorrer num intervalo de tempo curto.
As eleições dos Estados Unidos mostraram a baixa preocupação
do eleitorado com a tentativa de abolição da democracia. Donald Trump não só
foi eleito para um novo mandato, como foi chancelada sua plataforma de usar o
Estado para reverter investigações contra si.
É esse o caráter duradouro da depredação da democracia à
século XXI. Combater esse quadro leva bem mais que dois anos e requer um
trabalho mais sistemático de recomposição do tecido republicano do que apenas
punir os envolvidos em episódios específicos, como o atual.
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