Pesquisa revela fragmentos de um sistema em que a
identidade se dissolve no líder forte e rico, e nos explica, em parte, por que
dezenas de milhões sufragaram os golpistas
Conforme vai ficando mais evidente – como se fosse possível
ficar ainda mais evidente, e como se fosse preciso – que o ocupante da
Presidência da República até 2022 tramava, planejava e tentava executar um
golpe de Estado, uma pergunta se projeta para fora das sombras da conveniência:
como explicar o apoio que ele angariou? Por que tantos ricaços o adularam de
modo tão pegajoso? Por que tantos políticos experientes se dobraram em mesuras
tão solícitas? Por que tantos segmentos da caserna se comportaram feito gangues
tão analfabetas? E, por fim, por que as massas espoliadas se prestaram a
aplaudi-lo quando ele subia em caminhões para vomitar a treva sobre o asfalto?
Como entender que tenham votado numa figura declaradamente empenhada em
degradar-lhes um pouco mais a vida?
Quanto aos endinheirados, razões atávicas
podem nos dar uma pista: eles identificaram no capitão (do mato) um capanga
pronto a dizimar qualquer movimento que reclamasse por justiça. Era assim na
escravidão, é assim agora. Sobre os políticos experientes, podese pôr sua
subserviência na conta do oportunismo parasitário: nunca tantos ganharam tanto
por tão pouco. Já a conduta dos militares que embarcaram na quartelada do
Cebolinha, esta será decifrada pela desqualificação profissional, aí incluído o
esvaziamento da palavra honra.
E o que dizer do povo? Por que ele se deixou ludibriar
assim? E por que ainda se deixa?
Um bom fio da meada pode ser encontrado na pesquisa que a
antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado liderou no Laboratório de
Economia Digital e Política Extrema (DeepLab), da University College Dublin
(UCD), na Irlanda, com financiamento da União Europeia. Entre fevereiro e
novembro deste ano, ela e sua equipe investigaram como o Instagram e as mídias
sociais reconfiguraram tudo aquilo que chamamos de “mundo do trabalho” no
Brasil. O estudo detecta a “precariedade laboral” que vitima os trabalhadores mais
frágeis, alerta para a necessidade de regulação das plataformas, que lucram ao
desorganizar as relações trabalhistas, e sugere, com lógica imperturbável,
linhas de políticas públicas para combater o caos. Suas luzes mais finas,
porém, não têm a ver com a exploração da mão de obra, mas com a transformação
das atitudes, das crenças e dos valores das multidões. Ao pesquisar as jornadas
mais extenuantes, Rosana Pinheiro-Machado nos entrega um mapa da ideologia e
nos ajuda a entender por que as massas espoliadas agem como agem.
“O mundo dos negócios no Instagram apresenta uma contradição
fundamental: promove uma ideologia de livre mercado libertária, ao mesmo tempo
que exibe uma estrutura piramidal”, diz o relatório da pesquisa. “Uma mensagem
amplamente difundida, de gigantes a usuários nano, é que qualquer pessoa pode
crescer, ser livre, ser rica e trabalhar a qualquer hora e de qualquer lugar.
No entanto, esse mundo aparentemente igual e livre é, na realidade, uma
pirâmide, com influenciadores no topo e milhões de pessoas aspirando a
crescer.”
O estudo flagra a “crença generalizada em uma forma
distorcida de meritocracia”, com “aspirações irrealistas”, o que, “do ponto de
vista político, fomenta sentimentos antidemocráticos, contrários aos direitos,
e o surgimento de políticos populistas”. Em resumo, no ambiente das
plataformas, o entregador de pizza olha para Elon Musk, vê um igual e se
voluntaria a imitá-lo. Acredita que vai ser Musk e se envaidece de sua
convicção. Está certo de que só o que terá de fazer é vestir o figurino do
empresário de si mesmo, como preconizado pelos coaches, e trabalhar sem
descanso. Ele, que está na base da pirâmide, ou mesmo no subsolo, vê os
direitos trabalhistas como esmolas degradantes. Não, ele não quer esmolas –
quer, sim, ter a licença para acreditar que é tão burguês quanto o banqueiro e
que em pouco tempo será bilionário também.
O conceito de ideologia está fora de moda – o que também é
ideológico. Alguns marxistas ao pé da letra (mais ao pé do que à letra)
acreditam até hoje que a ideologia é uma “falsa consciência” – só quem tem a
“consciência verdadeira” são eles mesmos, os marxistas ao pé da letra. Outros,
seguidores do filósofo francês Louis Althusser, sustentam que “a ideologia é
uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos com suas condições
reais de existência”. A formulação parece melhor, mas não ajuda.
Em termos menos empolados, podemos dizer que a ideologia é
uma cola que, ao fazer a palavra grudar em seu sentido, ordena tudo o que as
pessoas imaginam saber, ao tempo que esconde delas tudo o que elas não sabem
que não sabem. Ao se lambuzar nessa cola, os servos se fantasiam de senhores e
sorriem para a selfie.
Rosana Pinheiro-Machado revela fragmentos desse sistema de
crenças e de práticas sociais, em que a identidade se dissolve no líder forte e
rico, e nos explica, em parte, por que dezenas de milhões sufragaram os
golpistas. Nesse caso, golpistas incompetentes. É engraçado. Às vezes os do
topo se parecem com os da base: por despreparo ou covardia, suas ambições
também fracassam.
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