A fragilidade governamental na condução da tramitação do
novo pacote fiscal é fonte de turbulência e descrédito na percepção da política
econômica
Estamos no epicentro de um novo pacote fiscal, considerado
por muitos como o momento decisivo do terceiro governo Lula. Os analistas da
política econômica enfocam a validade e qualidade das medidas. O mercado
financeiro deseja o primário ajustado e o arcabouço fiscal do ministro Fernando
Haddad funcionando. Não creio, no entanto, que as discussões que esses atores
vêm fazendo consigam dar conta de tudo que está sendo jogado neste momento.
É verdade que as expectativas sobre a economia brasileira
atravessaram semanas de deterioração. Temores sobre a inflação, escalada do
dólar, descrença sobre a situação fiscal e um cenário externo mais restritivo
com o segundo mandato de Donald Trump nos Estados Unidos geraram tensões que
resultaram em vigorosa expansão da curva de juros no longo prazo.
Contudo, as medidas em si não são o centro
da questão. De todos os pontos de vista, o centro do problema é a turbulenta
relação construída nos últimos tempos entre a governabilidade e as contas
públicas.
Em todo o período da nossa redemocratização, não se viu
tamanha ingerência do Poder Legislativo nas contas públicas. Lógico que as
emendas de parlamentares são a ponta mais protuberante do iceberg, cujo custo
para as contas públicas já se situa em 25% das despesas discricionárias. Mas
não é só, tais emendas sempre foram uma ferramenta de controle do Executivo
sobre o Congresso. Só que, agora, elas representam um instrumento de controle
das presidências das duas Casas sobre os parlamentares.
Defensores do governo Lula dirão que o País vive um momento
de esquizofrenia. Os Poderes institucionais não parecem dispostos a se submeter
a seu espaço constitucionalmente definido. Mas é nesse aspecto que reside uma
das piores faces da fragilidade da política econômica do terceiro governo Lula.
Qual seja, a imensa capacidade do Congresso Nacional de comandar receitas e
despesas da União e grande parte das relações federativas.
Vale observar que o governo Fernando Henrique Cardoso, que
tinha um constante embate com uma liderança do porte de Antônio Carlos
Magalhães, nunca experimentou o nível de submissão ao Legislativo que ora se
verifica.
Para ficar na política fiscal, uma breve análise do
cotidiano da guerra de posições mostra que diversas das tentativas de ajuste
que a Fazenda propõe naufragam justamente quando chegam ao Parlamento. Foi o
que ocorreu, por exemplo, com a reversão da desoneração da folha salarial, com
a limitação dos benefícios concedidos no âmbito do Programa Emergencial de
Retomada do Setor de Eventos (Perse), e com a tributação dos juros sobre
capital próprio, para ficar apenas nos principais casos.
No campo das relações federativas, a conturbação posta pela
ação do Legislativo é ainda mais complexa. Só a título de exemplo, tivemos o
Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), bancado pelo governo federal,
com valores desconsiderados para o cumprimento da meta fiscal. Mais que isso,
todas as tratativas da renegociação da dívida estadual indicam que a União,
agora, vai entrar com seus recursos para equacionar a questão.
Mas é na tramitação da reforma tributária que reside o pior
cenário, implicando um desequilíbrio de grande magnitude para o governo
federal. De um lado, porque todas as políticas de incentivo fiscal dos Estados
serão extintas, em troca de um fundo de ressarcimento, bancado apenas pela
União. Por outro lado, a extinção do Imposto sobre Produtos Industrializados
(IPI) abre a necessidade de recursos federais para completar os Fundos de
Participação de Estados e Municípios, dado que o Imposto Seletivo nem de longe
conseguirá repetir a receita do IPI.
O problema é que todos os analistas enxergam as dificuldades
do governo Lula com a administração política e, para usar um jargão do mercado,
a “precificam”. Isso magnifica uma percepção de que o compromisso governamental
com o cumprimento dos termos postos no arcabouço fiscal está longe de ser uma
unanimidade, o que é reforçado pelas falas do presidente.
Importante lembrar que assim como o teto de gastos era
eivado de extratetos, o arcabouço fiscal já parece uma colcha de retalhos. As
exceções alcançam dimensão desproporcional. Precatórios, Fundo Constitucional
do Distrito Federal, entre outros podem ser retirados dos números, mas ainda
assim aumentam a dívida.
Poderíamos dizer que são duas faces da mesma questão. Na
condução da política fiscal o governo se compromete com a cartilha do
pensamento conservador, sem querer entregar a política fiscal ditada pelo
mercado. Na política monetária ocorre o mesmo. Apesar de todas as indicações de
que temos uma taxa de juros real em nível estratosférico, os indicados do atual
governo votam com o juro e parecem concordar com as “razões” de quem advoga um
ajuste de Natal da Selic de 0,75 ponto porcentual ao ano.
Essas dubiedades estão também inseridas no novo pacote
fiscal no Congresso. A fragilidade governamental na condução de sua tramitação
é fonte de turbulência e descrédito na percepção da política econômica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário