Se tivessem conseguido dar o golpe, além de prender,
torturar, matar e censurar a imprensa, eles brigariam entre si. Jamais os
generais admitiriam bater continência para capitão
As revoluções, ou suas respectivas tentativas, têm um
aspecto ridículo que nunca deve ser desprezado. O realismo mágico existe. Não é
invenção de escritores do quilate de Gabriel García Márquez. Eles perceberam o
fenômeno na política latino-americana. Nessas histórias, há sempre um general,
cheio de medalhas no peito, a proclamar-se o benefactor da pátria, em nome da
defesa das instituições, da moral e dos bons costumes, que baixa o cacete nos
opositores. Às vezes, em nome de Deus.
Não será surpresa se, dentro de alguns anos, tudo isso que a
Polícia Federal descobriu seja esquecido ou considerado ilegal. Foi assim com a
Operação Lava-Jato, que encontrou uma roubalheira abissal nos negócios da
Petrobras. Apesar das confissões, feitas em juízo, de repente, todos foram
inocentados. Aqui, não há memória.
A Polícia Federal colocou o guizo no
pescoço do gato. O capitão Bolsonaro utilizou todo o período de seu governo
para tramar contra as instituições nacionais. Ele esqueceu ou não teve
competência para governar. Não inaugurou uma única escola, não avançou um passo
no sentido de colocar o país em posição melhor no contexto internacional.
Frequentou colóquios internacionais como personagem exótico, que abandonava o
local dos encontros de autoridades estrangeiras para fazer refeições em
restaurantes de comida rápida. Vendeu as joias recebidas como presente em
visitas de Estado, representando o Brasil. Frequentou os quartéis durante os
quatro anos de seu mandato. E concedeu generosos aumentos de salário aos
militares.
Roteiro muito semelhante ao trilhado por Nicolás Maduro, o
homem forte da Venezuela que, nos últimos tempos, passou a fazer críticas
abertas ao presidente Lula, de quem era amigo íntimo. Ele quebrou a PDVSA, a
petroleira venezuelana, entregou os melhores cargos para seus correligionários,
fechou os olhos para o tráfico de drogas e colocou os garimpos de ouro à
disposição dos militares. Encheu o peito de medalhas, o que lhe concedeu o
direito de prender, torturar e matar opositores. De vez em quando, conversa
com o falecido Chávez por intermédio de um passarinho que pousa na sua janela.
Tudo em nome do pobre Bolívar, que apenas comandou a independência das colônias
espanholas na América do Sul. O libertador morreu tuberculoso. Sua mulher,
Manuela Sáenz, chamada de la libertadora, viveu seus últimos anos vendendo
pastéis em Guayaquil, Equador.
Essa é a nossa América do Sul. Não se esquecer da paixão dos
argentinos pelo cadáver de Evita Perón que perambulou insepulto durante anos e
viajou entre Espanha e Argentina. No caso brasileiro, o presidente, em vez de
governar, passou a tramar contra as instituições de seu país. Ele teve todos os
instrumentos ao alcance da mão. Tinha a caneta, a polícia, a maioria dos
parlamentares e o apoio popular. Decidiu caminhar pelo lado escuro da política.
Perdeu a eleição por incompetência e incumbiu militares de forças especiais do
Exército de matar o presidente da República, o vice e o então presidente do
Tribunal Superior Eleitoral. Coisa de amador. Como acontece na melhor
literatura latino-americana, sempre dá tudo errado, seja porque alguém falou
demais, seja porque ficou bêbado, seja por ter chegado atrasado na hora fatal.
Ou, ainda, por ter sujado as calças.
Não havia o menor risco de dar certo. Eles fizeram o ensaio
geral no dia da diplomação de Lula e Alckmin. Promoveram a maior baderna no
centro de Brasília. Chegaram a tentar invadir a sede da Polícia Federal. A PMDF
limitou-se a olhar. Mas o golpe, ou o que restou dele, estava em curso. Depois
veio o 8 de janeiro, que foi claramente conduzido por gente do ramo. A invasão
do Congresso pelo teto, com apoio de uma escada de cordas, a utilização de água
para reduzir o efeito do gás lacrimogêneo, denuncia a presença de
especialistas. Os militares colocaram dois tanques de guerra para defender o
enorme acampamento de manifestantes, onde eram servidas três refeições por dia.
O pessoal tinha dinheiro.
Naquele dia, Lula estava em Araraquara, interior de São
Paulo. Foi o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli,
que teve a coragem de entrar no quartel-general do Exército e determinar a
retirada dos manifestantes da frente das instalações militares. Todos foram
presos. Agora, a Polícia Federal chegou aos mandantes. Eles são herdeiros do
falecido ministro da Guerra, Sylvio Frota, de quem o general Augusto Heleno foi
ajudante de ordens. Ele foi exonerado pelo presidente Ernesto Geisel por ser
contra a redemocratização do país.
Se tivessem conseguido dar o golpe, além de prender, torturar, matar e censurar a imprensa, eles brigariam entre si. Jamais os generais admitiriam bater continência para capitão. Bolsonaro correria o risco de ser preso por seus amigos, em nome da defesa da ordem. Macondo não existe somente na literatura de García Márquez. Macondo é aqui.
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