A mentira era o primeiro pilar. O alvo era minar a
confiança na democracia, fabricar o ‘clamor popular’ e legitimar o golpe
Não foi um governo. Foi uma conspiração que durou um
mandato. Começou em 2019 e a arma inicial foi a mentira. Durante todos os
quatro anos a mentira foi usada como método. O objetivo era sedimentar a ideia,
por repetição, de que o sistema eleitoral era fraudado e, assim, minar a
confiança na democracia. A partir daí seus atos pareceriam legítimos. Os
desdobramentos foram sendo escritos mas eram previsíveis. Cercar-se de
militares, cortejar as Forças
Armadas, especialmente o “meu Exército”.
Escolher alvos que seriam atacados tanto pelo então
presidente da República, quanto pela milícia digital para o desmonte
institucional. Por fim levar seguidores para Brasília, produzir o “clamor
popular de 64”.
O relatório da Polícia
Federal ajuda a entender a força da mentira. “O grupo investigado
criou, desenvolveu e disseminou a narrativa falsa da existência de
vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação”, diz a PF, no início
do documento. E isso começou com Bolsonaro dizendo que houve fraude na eleição
que ele ganhou. “O objetivo era sedimentar na população a falsa realidade”,
para depois “ser utilizada como fundamento dos atos”.
Foi para isso que se criou a milícia digital, o gabinete do
ódio. Não era apenas para hostilizar as pessoas que eles consideravam inimigos.
A milícia escolheu alvos e os atacou por quatro anos. Mas o principal era o
sistema eleitoral. “ Os produtores de dados falsos difundiram em alto volume,
por multicanais, de forma rápida, contínua e repetitiva” a ideia de que houve
fraude em 2018 e haveria em 2022.
“Por mais inverossímil que possa parecer” ela foi repetida
para atingir o “público alvo”. E por que repetir tanto? “A repetição maçante
das informações, mesmo que falsas, leva à familiaridade, e a familiaridade leva
à aceitação.” Para completar, “os investigados fizeram uso de pessoas com
posição de autoridade perante o público alvo”.
A rede da mentira era o pilar de tudo o que se seguiu
depois. A trama se espalhou em núcleos e propósitos. Tudo sob o comando do
beneficiário maior: Jair
Bolsonaro, o homem que sempre sonhou com uma nova ditadura. O governo
passou a funcionar em torno disso.
A Abin de Alexandre
Ramagem não fazia inteligência de Estado. Ajudava na fabricação de
mentiras. O GSI,
do notório general Heleno, remanescente da linha dura do governo militar,
também. Chefe da Casa Civil, depois ministro da Defesa, Braga Netto era o
lugar-tenente do conspirador em chefe. Foi usado como peça chave, em 2021,
quando Bolsonaro demitiu o Ministro da Defesa Fernando Azevedo e todos os
comandantes. Ali, Bolsonaro achou que havia dado o golpe de mestre, escolhendo
os que levariam as tropas.
O plano falhou. Há várias razões. Mas veja que, se o general
Braga Netto tivesse permanecido ministro da Defesa, o general Paulo
Sérgio Nogueira é que estaria no comando do Exército. O general Paulo
Sérgio não só participou, como convocou uma reunião com os comandantes no dia
14 de dezembro para mostrar a minuta do golpe. Numa instituição baseada na
hierarquia, o que aconteceria se o comandante do Exército dissesse sim?
No dia 5 de março, eu
contei na minha coluna que os depoimentos dos ex-comandantes Freire
Gomes e Baptista Jr haviam implicado diretamente Jair Bolsonaro e o
ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira. Disse que também Paulo Sérgio
havia mostrado a minuta aos comandantes.
“É depoimento, mas está comprovado pela apreensão que foi
feita”, me disse minha fonte na época. Contei que o general e o brigadeiro
deram detalhes que preencheram lacunas. “E as peças foram se encaixando, como
num quebra-cabeças”, me disse a fonte.
O relatório da PF é um imenso quebra-cabeças em que tudo se
encaixa. Há provas robustas. Falas recuperadas, documentos apreendidos,
reuniões gravadas, captura da presença dos indiciados nos locais e horas dos
eventos. Além do decreto do golpe, em várias versões, havia o plano homicida
“Punhal Verde e Amarelo”, a estrutura do gabinete de gestão de crise e a minuta
142. Os golpistas redigiram, discutiram, guardaram cópias e a Polícia Federal
encontrou.
A ordem de Braga Netto para que a milícia digital atacasse
Freire Gomes e Batista Jr. mostra como a mentira era uma arma. Os golpistas
queriam neutralizar os obstáculos. Até o dia em que “neutralizar” significava
matar. A mentira foi a primeira pedra no tabuleiro do horror que Bolsonaro e
seus ajudantes tentaram impor ao país.
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