terça-feira, 12 de novembro de 2024

O SORRISO DE EUNICE PAIVA

Giovana de Lima Freire, VOTO POSITIVO

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 23 - AINDA ESTOU AQUI: LITERATURA, CINEMA E OSCAR?

Eu cheguei de muito longe

E a viagem foi tão longa

E na minha caminhada

Obstáculos na estrada, mas enfim aqui estou

 

Mas estou envergonhado

Com as coisas que eu vi

Mas não vou ficar calado

No conforto acomodado como tantos por aí (...)

 

"É preciso dar um Jeito, meu amigo" - Erasmo Carlos - 1971

 

Com a trilha sonora de Erasmo Carlos [2], temos o sucesso de bilheteria “Ainda estou aqui” que estreou no Brasil em 07 de novembro de 2024, o longa "já premiado internacionalmente pelo Festival de Veneza de 2024, o filme retrata a história por trás do livro publicado por Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui, (2015) [3]; autor do livro “Feliz Ano Velho (1982)” [4].

No Rio de Janeiro de 1970 sob a sombra da ditadura militar, acompanhamos a história de Eunice Paiva, uma mulher que luta para superar um desaparecimento político, definido pelo próprio filme como “morrer em guerra”. Diante da dor e da incerteza, Eunice se questiona: “Você pode publicar isso?”

Ao longo da trama, percebemos como o regime autoritário permeia o cotidiano de Marcelo, ainda criança. A presença constante de helicópteros, comboios militares e até mesmo uma violenta batida policial, retratada em uma das primeiras cenas, demonstra a brutalidade da ditadura. A pergunta que fica é: “até que ponto o filme consegue retratar a complexidade desse período histórico?" Quando Rubens Paiva é levado ouvimos um: “posso ir com ele?” E a seguinte resposta: “seu marido já volta pra casa”. Infelizmente para a tristeza da família Paiva ele nunca mais voltou.

Tanto no livro quanto no filme o enredo nos leva a se apaixonar pela força da falecida Eunice Paiva (1929-2018) a mulher que nos inspira sorrisos mesmo após os 12 dias de seu interrogatório nos anos de chumbo [5], mas a partir de então, torna-se uma advogada, ativista e símbolo da luta contra a ditadura militar no Brasil. Sua luta contra o sistema motivada pelo desaparecimento de seu marido Rubens Beyrodt Paiva, torturado e morto, sendo ela confirmada 40 anos depois pela “comissão da verdade” [6].

“Não se encontra no lugar designado” a frase escrita por Eunice em um bloco de notas, cena de 5 segundos que transmite a exata dúvida que os familiares dos mortos da ditadura tinham sobre o paradeiro de seus familiares. Uma foto icônica, um sorriso, ou melhor, o pedido da matriarca por sorrisos mesmo em tempos de luto [7]. Foto na Revista manchete ou como foi dito no filme pela atriz que interpretou a filha mais velha de Rubens e Eunice “porque vamos falar com aquela revista vendida”.

Um corte temporal de 25 anos, para o ano de 1996, finalmente é entregue a certidão de óbito e Eunice interpretada por Fernanda Torres, a personagem em uma entrevista dá a seguinte resposta que me chamou muita a atenção “Não, eu acho que seria preciso indenizar as famílias, e fazer o mais importante; que é esclarecer e julgar todos os culpados pelos crimes cometidos durante a ditadura, pois, caso contrário, nada impede que esses crimes continuem sendo praticados impunemente.” Frase que para nós Brasileiros deveria ser utilizada em diversos aspectos já que a maioria dos crimes são cometidos pela certeza da impunidade.

Novo corte agora para São Paulo 2014 com uma das cenas que melhor retratou a situação real de Eunice que já lutava contra o Mal de Alzheimer, está um almoço de família onde são ditas palavras avulsas que remetem a momentos ou fotografias que aparecem no decorrer do filme: “Manchete, Praia, Despedida, Brasília e Xarete” palavras que fará muito sendo aos que leram a obra literária e assistiram o longa e o questionamento “que dia é feriado?” se referindo ao dia do desaparecimento de Rubens.

Em suma, e com a protagonista no atual momento vivida por Fernanda Montenegro imóvel e na frente de um televisor com a seguinte reportagem que dizia: "duzentos e trinta locais onde esses crimes foram cometidos, como quartéis das forças armadas, além de áreas usadas para ocultação de cadáveres, como a restinga da Marambaia no Rio de Janeiro; algumas dessas vítimas tornaram se ícones da resistência contras os abusos do regime militar, como o jornalista Vladimir Herzog [8], o estudante Stuart Angel [9], e o Deputado Rubens Paiva. O corpo de Rubens Paiva assim como o de pelo menos 200 corpos nunca foi localizado!” cena de 53 segundos cronometrados de silêncio ininterrupto, próxima e a última cena uma nova foto de família e novamente um pedido ecoa dessa vez não pela matriarca já debilitada mas por seus filhos “todos sorrindo”.

 

[1] Graduanda em História pela UFRRJ e graduando em Pedagogia pela UCAM.

[2] É preciso dar um Jeito, meu amigo- Erasmo Carlos (1971)

 [3] PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda Estou Aqui. 1ª edição. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. , referência bibliográfica do livro que inspirou o filme.

 [4] PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz Ano Velho. 35. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. 232 p , referência bibliográfica do livro que retrata o acidente que deixou o autor tetraplégico.

[5] Os anos de chumbo foram o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil, estendendo-se basicamente do fim de 1968, com a edição do AI-5 em 13 de dezembro daquele ano, até o final do Governo Médici, em março de 1974. Alguns, reservam a expressão "anos de chumbo" especificamente para o governo Médici.

[6] https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade

[7]https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/11/07/eles-ainda-estao-aqui-filhos-de-eunice-e-rubens-paiva-falam-sobre-o-filme-que-retrata-a-luta-da-mae-contra-a-ditadura.ghtml

[8] https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/vladimir-herzog/

[9] https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/stuart-edgar-angel-jones/

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